São Bernardo do Campo, 21 de agosto de 2042
No seu “Livro Sobre Nada”, o Manoel diz-nos que: “há histórias tão verdadeiras que, às vezes, parece que são inventadas”. A história da Ana é uma delas. Contar-vos-ei episódios da vida dessa maravilhosa mulher. Começando pelo princípio, que os velhos têm súbitos caprichos e, hoje, apetece-me ser redundante.
Situemos o primeiro episódio num dia em que a Ana foi à escola. É minha obrigação referir que todas as aspas enquadram e reproduzem palavras da Ana, religiosamente escutadas, num saboroso exercício dessa tão difícil arte da escutatória, de que o Rubem nos falava. O Rubem recorria ao talvez neologismo “escutatória”, por oposição aos excessos de “oratória” (quem nunca leu o Rubem não perca mais tempo). Serão muitas as aspas de citar a Ana, pelo que este texto (poderei dizê-lo com toda a propriedade), será de sua autoria. Eu apenas o darei a conhecer.
A estória fez-me recordar um conhecido poema do Jacques Prévert, que dá pelo título de “page d´écriture”. Acaso não conheçais o poema, direi que ele nos fala de uma criança-aluno que, perante a monotonia da aula, dela se “ausenta”, conduzido pela imaginação. E termina deste modo: l’encre redevient eau / les pupitres redeviennent arbres /la craie redevient falaise / la porte-plume redevient oiseau.
Na história da Ana, uma mosca substitui o pássaro do poema do Jacques, mas vem a dar no mesmo. No tempo em que Jacques e Ana passaram pelo ofício de alunos, todas as crianças saudáveis fugiam à monotonia das aulas pelas frestas que a imaginação lhes oferecia. Se a Ana leu o poema, não sei. Mas descreveu-me o último quarto de hora de uma das suas aulas, tal e qual eu vos contarei. Passo a palavra à Ana:
“Olho o relógio. Graças a Deus, já só faltam quinze minutos para a campainha tocar. O professor caminha lentamente entre as filas de carteiras, falando, falando…. Os alunos estão imóveis, quase de mármore, a olhar os livros com olhos desfocados. O silêncio é ensurdecedor. Só passaram cinco minutos. Tenho os músculos tensos. Concentro-me no que vou fazer, quando a campainha tocar: pegar na mala, vestir o casaco, e porta fora!
Escuto o arfar nervoso da minha colega de carteira. E eu quase não consigo respirar. Os nós dos dedos estão brancos do esforço que faço sobre a caneta.
Uma mosca pousou na minha carteira. Tem umas lindas asas. Limpa-as, asseadinha que é. Será macho ou fêmea? É difícil saber. Já vi duas moscas coladas, mas nunca vi o sexo da mosca. Talvez, se olhar mais de perto…
Oh! Fugiu! Quem me dera ser mosca!
Os meus olhos voltaram-se para o mostrador do relógio. Começo a contar os segundos e o meu pé marca o ritmo: três… dois… um… O quê?!! Que aconteceu? A campainha não tocou!
DRRIIIIM! As estátuas ganham vida, as escadas são torrentes de vida reprimida, as portas sangram vida. Largo a mala no meio do quintal. Como um raio, subo à minha árvore favorita. Vejo-me, saboreando frutos, no balancear dos ramos. A brisa põe flores do campo nos meus cabelos.
Abro os olhos. Como é possível que dez minutos possam durar uma eternidade?”.
Quando te contei esta estória, querido Marcos, tu me olhaste com olhos de quem queria perguntar. Interrompi a narrativa.
“Ó avô, a escola do teu tempo também era assim?”
Um avô não pode mentir. Não houve outro remédio senão dizer-te a verdade. Que era mesmo assim: com aulas, campainhas, moscas, pássaros…
“E a escola para onde eu vou? Como é? Diz lá, avô! Também é assim? Diz, avô!” Não respondi. Não tive coragem de te dizer que a escola que te esperava era idêntica, em quase tudo, à escola da Ana, à escola que foi minha, à dos meninos do século XXI.
Por: José Pacheco
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