Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MV)

Araruama, 23 de setembro de 2042

Aconteceu no fim dos anos sessenta, num tempo em que os jovens da minha geração tinham por curto horizonte uma guerra em África e fronteiras solidamente vigiadas. 

O João, futuro professor era, ao tempo, um jovem quase a fazer vinte anos. Encontrou o Paulo, num cineclube. Beberam uns tintos, conversaram sobre o último filme do Bergman. 

O Paulo disse sentir-se sufocado pelo silêncio e pela indiferença reinantes num país de brandos costumes. Depois, foi cada qual para seu destino. O Paulo, sozinho. O João, seguido por um “cinzentão” da polícia política já seu conhecido de “outros passeios”. 

Já passava da hora de jantar, quando o telefone tocou. Um irmão do Paulo perguntava se o João o vira, nesse dia. Era o dia de o Paulo fazer dezoito anos. A festa-surpresa estava preparada, a mesa posta, mas o Paulo ainda não tinha chegado a casa. 

O João tratou de o sossegar. Eram nove horas da noite. Estivera com o Paulo até às oito. No caminho entre o cinema e a casa não gastaria mais de meia hora. Talvez se tivesse encontrado com amigos e estivesse a comemorar o aniversário num boteco qualquer.

Na manhã seguinte, o João passou pela casa do amigo, para lhe dar uns “parabéns atrasados”. A família estava ausente. Só a irmã mais nova o atendeu. Olhos chorosos, sem dizer uma só palavra, abriu a porta e, como era habitual, conduziu-o até ao quarto do Paulo. Em cima da cama, estava um poema de despedida. 

Na certidão de óbito, o médico registou a hora exata do suicídio: “vinte horas e dez minutos”: dez minutos após o encontro com o amigo João.

No último ano dessa fatídica década, muitos amigos do João optaram por transpor a fronteira, a caminho do exílio. Outros passaram a última das fronteiras: a das profundezas de um rio, ou o mergulhar no ácido de drogas pesadas. 

Era o que estava prestes a suceder com o Pedro, quando o João o encontrou, caído na cave de um bar. Exangue, com um olhar manso, implorou ao João que lhe injetasse a droga nas já massacradas veias. Em desespero, o João fez a seringa em pedaços. E implorou: 

“Pedro, deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar!” 

Chamou uma ambulância. Acompanhou o Pedro ao hospital. Mas, quando foi obrigado a deixá-lo, estava quase certo de que a morte levaria mais um amigo.

A vida fê-los percorrer diferentes caminhos. O João passou à clandestinidade, na oposição ao regime ditatorial. Não mais voltou a ver o Pedro. 

Decorridos vinte anos, viajou até Paris. Enquanto lia as inscrições nas paredes do Arco do Triunfo, entretinha os ouvidos em conversas de gentes de origem diversa, numa multiplicidade de idiomas que nem tentava decifrar. Subitamente, num português com sotaque francês, uma voz familiar fê-lo voltar-se: 

“Deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar…” 

Por detrás de um rosto burilado por muitos anos e duras experiências, reconheceu o olhar manso do seu amigo Pedro. 

Abraçaram-se em silêncio. Choraram em silêncio. 

Haverá palavra, numa qualquer língua, que faça sentido ser dita, quando se saboreia o resgate de uma vida? Ficaram sorrindo longos e saborosos instantes. Depois, desceram a avenida, conversando, como se fora há vinte anos.

O Pedro passara longos meses lutando contra a tentação do regresso à heroína, agarrado a uma frase que usava como âncora:

“Deixa andar o barco. Um dia, ele há-de encalhar”. 

Passara por hospitais e clínicas de recuperação de toxicodependentes. Refizera a vida. Casara com uma cidadã francesa. Tinha dois filhos. Considerava-se uma pessoa feliz.

Encontrei o João, num dos meus passeios matinais. Permanece igual a si próprio. É um professor salva-vidas.

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