São Pedro da Aldeia, 24 de setembro de 2042
No mesmo mês em que se denunciava a triste situação da formação de professores, outra triste situação era assunto na comunicação social: o drama da colocação dos professores, no início de cada ano letivo. Um programa da manhã da televisão portuguesa exibia “a dor de uma professora, que “para dar aulas”, vivia longe dos seus. A professora Branca mostrava-se emocionada, ao falar de vida vivida muito longe da sua família:
“Os primeiros dois meses são de adaptação. E como mudar de emprego todos os anos. Choro muito. Falta-me o suporte, a família, os miúdos”.
Susteve a fala, visivelmente emocionada. Enxugou as lágrimas e disse:
“Peço desculpa. Eu gosto muito daquilo que faço. E, todos os dias, fazemos uma videochamada. Mas vivo ansiosa. Nesta altura do ano, pergunto: Vou ficar colocada? Na primeira reserva de recrutamento? Na segunda? Na terceira? É sempre uma incógnita e uma angústia.
Quando fico colocada, tenho de procurar um alojamento, um alojamento que não seja muito dispendioso.
Qualquer dia, vou conseguir trabalhar perto de casa, obviamente”.
Qualquer dia… na reserva de recrutamento… Que absurdo!
Num município do interior do país, conheci a Marta. “Colocada” a quatrocentos quilómetros de casa, eu a via chorar, definhar. Sempre que podia, saía num fim de tarde, viajava para junto da família e regressava no dia seguinte. Chorando:
“Professor Zé, o meu filho João está doente. O meu marido tem de ir trabalhar. Eu não posso largar o meu emprego. E não tenho como pagar a alguém, para ficar com o João.”
Todos os professores, sem exceção, moravam longe dos seus lares. Nenhum deles residia nesse município. Todos ansiavam poder, um dia, trabalhar perto de casa. E era isso que estava escrito na lei:
“Artigo 48.º da Lei de Bases do Sistema Educativo: O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orienta-se por uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respetivos docentes.”
Por que não se cumpria aquilo que a lei estabelecia?
Talvez porque os trabalhadores da educação estavam divididos. Havia efetivos, substitutos, contratados… havia diferentes salários para idênticas funções. Era esta a indigna situação, que o ministério impunha e os órgãos de classe não contestavam:
O vencimento-líquido de um professor contratado era pouco mais de mil euros. E havia professores universitários que ganhavam mais de cinco mil euros por mês. Por que este abismo salarial? Era vergonhosa a situação! Era inconcebível mantê-la! Perante algumas situações, cheguei a sentir vergonha de ser professor.
Muitos obstáculos se ergueram face a movimentos de renovação. Ora eram lideranças tóxicas, ora era o autoritarismo da administração. Sofríamos o assédio político e agressões de uma sociedade doente. Suportávamos o peso de uma cultura profissional degenerada e os efeitos de uma formação deformadora.
Apesar dos pesares, na década de vinte, o vosso avô ainda conseguiu reunir forças – as poucas, que restavam de cinquenta anos de andarilhagem – para, num último impulso, acompanhar fazedores de futuros num presente auspicioso. No setembro de vinte e dois, a vida só poderia… melhorar.
No assomo de uma breve crise existencial dos idos de cinquenta, o Senhor Cardoso me aconselhou:
“Zé, fica tranquilo. Para alcançares o que desejas alcançar, bastará que idealizes o real e realizes o ideal.”
E assim foi. A década de vinte deste século foi testemunha da realização de uma nova construção social, até então apenas idealizada.
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