Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXV)

Maricá, 3 de setembro de 2042

Hoje, precisamente hoje, completam-se vinte anos sobre a realização do primeiro encontro virtual de um processo de transformação, que culminou na criação dos primeiros protótipos de comunidade de aprendizagem. 

Nesse tempo, face a obstáculos aparentemente intransponíveis, agíamos como Darcy recomendava:

“Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada”.

A Zizi, a Tina, a Cléo, o Mauro, a Valéria e outros educadores de uma dedicada equipe, voluntariamente, se lançaram no afã de partilhar saberes, sem nada esperar em troca. Pois o Alain dissera: 

“Fazes o que deves e nunca esperes nada em troca. Se vier alguma coisa, acolhe-a como se de um presente se tratasse”. 

E o Philippe o corroborava:

“A reciprocidade não é nada comigo. É assunto do outro e só dele. Esperar a reciprocidade, não é dar um presente, é fazer comércio. O que, evidentemente, não impede que quando a reciprocidade advém, a possamos viver como uma verdadeira felicidade. A felicidade nunca está no lugar onde a esperamos; nunca vem quando a exigimos”.

Eram tempos sombrios aqueles em que empreendemos caminhos de mudança e inovação, tempos de fome e sede de justiça, a par da fome resultante da desigualdade social. Uma crise econômica e múltiplas violências se juntavam a uma epidemia de corrupção. Eram tempos que Saramago assim caracterizou:

“Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”.

Quando éreis crianças, eu sentia dificuldade em vos explicar absurdos. Os seres humanos de tenra idade não possuem a capacidade de os digerir. Outra solução não me restava, a não ser a de transformar a reflexão em estórias. 

Contei-vos que era costume os professores juntarem alunos em grupos a que davam a designação de “turma”. Tentei explicar-vos o que era uma “turma”. Tarefa difícil! A cada vosso olhar de estupefação, a narração foi sendo entrecortada pela definição de conceitos, sob risco de perderdes o fio à meada. 

Passei pela provação de tentar explicar o inexplicável. Amiúde, o vosso incrédulo semblante derrotava a minha argumentação, pelo que me socorria da expressão “in illo tempore”, para vos tranquilizar, dando a entender que os factos narrados já não sucederiam no seu tempo. 

Sem correr o risco de ofender a inteligência de uma criança, como seria possível explicar-lhes que professores (in illo tempore, claro!) dessem “aulas” a “turmas”, ensinando a todos como se o todo fosse um só? Como explicar que não se apercebessem de diferentes ritmos de aprendizagem? Como explicar que os professores não reconhecessem em cada criança um ser único e irrepetível? Como explicar que juntassem todos os alunos, num mesmo tempo, num mesmo espaço, nas mesmas condições de pressão e temperatura, e a todos aplicassem testes iguais para todos, fazendo perder um tempo precioso aos que sabiam a matéria e impondo chancelas de ignorantes aos que a não sabiam? 

Para vos dar tempo de respirar fundo e recuperar de perplexidades, eu introduzia pausas na minha narrativa. E vos falava de insignes mestres. Como Rosseau, que nos dizia que “tudo é perfeito quando sai das mãos de Deus, mas tudo se corrompe nas mãos do Homem”. Ou como Freire, que acreditava ser possível que as pessoas mudassem a sociedade através da escola. E vos sossegava, dizendo ser possível reinventar a Escola, porque ela não era obra de Deus, mas do Diabo, como defendia um senhor chamado Adam Férrière.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CMLXXXVI)

Maricá, 4 de setembro de 2042

Por que aprendemos? Por que uma criança aprende a falar, a andar? Como aprende? 

A criança não se perguntava. Mas nós, os professores, carecíamos de fazer perguntas a nós próprios. O projeto da Ponte começava com esta frase: “os professores precisam mais de perguntas do que de respostas”. E arriscamos nos perguntar, questionar certezas.

Quando emergiu a síndrome do ninho vazio e quando vós nascestes, intuí respostas a essas e outras perguntas. Tomei consciência de que aprendera a ser pai… e já era avô.

Acontece um tempo nas nossas vidas em que ficamos órfãos dos nossos filhos, porque os amamos e os queremos com vida própria. Porque, como diria o Kalil Gibran, “uma árvore não cresce à sombra de outra árvore”. 

O nascimento de um neto é como o regresso de um filho pródigo. Voltamos ao tempo de contar estórias. Não apenas as que falam de duendes e fadas, pois outras estórias assomam na memória dos avós. O envelhecimento ilumina a memória de longo prazo, e contamos estórias do tempo em que fomos meninos. Para vós eram tão reais e verosímeis como aquelas que falavam de princesas encantadas e de príncipes. 

Fui convosco até à beira do rio, de mãos dadas, para fruir a confiança absoluta que segura a nossa mão, mas uma criança pertence ao que está acontecendo à sua volta. Ela é o que está acontecendo. Se a acompanhamos na identificação com o aqui e agora, reencontramo-nos com o movimento livre da criança que fomos reaprendendo a tudo ver como se fora a primeira vez. 

Enquanto seguíeis com o olhar o barco que ligava as margens, eu cerrava os meus olhos e via barcaças de carvão coladas à amurada de Massarelos (que fazer, para tornar mais leve o peso da memória?), ouvia o chape-chape das águas comprimidas entre as madeiras, o ranger das pranchas que ligavam o cais às barcaças. 

Quais formiguinhas, jovens de cesto na cabeça corriam sobre as pranchas como atletas em cama elástica, gestos dançarinos suspensos sobre o vazio, tem-te-não-caias, num equilíbrio precário. Ou milagre de S. Nicolau, pois, se a todo o momento, se adivinhava o escorregar na prancha lodosa e a inevitável queda, não me recordo de ter visto alguém cair nas águas do rio. Quem os teria ensinado a “voar”? Como teriam aprendido?

“Avô, o que é aquilo? – perguntastes, olhando a ponte. Enquanto respondia, me via em raids suicidas sobre o arco de Betão incompleto da que viria a chamar-se “Ponte da Arrábida”. Transpúnhamos as águas e estávamos na outra margem. Na Aforada, éramos corsários lançados à abordagem de traineiras amarradas ao cais. Fugíamos, nadando, e depositávamos os tesouros (um pedaço de cordame, um pedaço de rede roubada, um prego enferrujado, não importava qual fosse o produto do saque…) nas ruínas de uma fábrica abandonada na encosta sobranceira ao rio, que era a nossa mina de Aladino. 

Quando o sol acordava, encontrava-me atento ao agonizar do peixe, no fundo de um caíco. E, quando o dia se extinguia em vermelhos gritos, encontrava-me debruçado na varanda em frente ao Douro da minha infância, na contemplação do acostar dos barcos rabelos ao cais de Gaia, absorto em viagens imaginárias.

Em infantis lucubrações também ficava, quando me sentava junto da Miquinhas, que lavava a roupa carregada à cabeça, escadas do Codessal abaixo. 

Certo dia, um empurrão despertou-me das divagações e fez-me mergulhar no rio. Lembro-me de ter vindo à superfície, depois de engolir uma substancial quantidade de líquido misturado com sabão. E de não ter um braço salvador à minha espera. Só risos e incitamentos. 

Foi nesse dia que descobri que sabia nadar, que aprendera a nadar. 

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