São José dos Campos, 9 de outubro de 2042
Entre as idas e vindas do cuidar de amigos, não me sobrou tempo de preparar o ritual das manhãs de domingo, como venho fazendo desde há mais de vinte anos. E como preciso de ir regar as plantas, antes que o sol as aqueça, substituo a tradicional partilha de beleza por belas mensagens colhidas num baú repleto de velhos trapos e badulaques.
São restos de memórias guardadas com desvelo. Resgatei a primeira num pedaço de papel deixado dentro de um velho livro, há, exatamente, vinte anos:
“Acabei de ver as postagens. Espero que ainda possa ver algo acontecer, aqui, em São José dos Campos. Confesso que desanimei, meu amigo”.
Nesse dia do outubro de 2022, eu partia de São José para novas deambulações pelos brasis das escolas. Conhecera a Patrícia, a Thereza, o Jhonis, três secretários de educação de um novo tempo. Voltara ao amoroso convívio com a Claudia, reencontrara a Vivi e a comunidade Espiral. Deixava para trás um rasto de esperança, a certeza de mais um recomeço.
Vivíamos um tempo de transição. Movimentos dispersos se integravam. Ganhava novo sentido aquilo que, nos primórdios de uma nova humanidade, o amigo Brandão ensaiara: uma economia de troca. Na década de oitenta, na sua casa de Pocinhos de Rio Verde, convidava os vizinhos a colocar, num canto que ele providenciara, os objetos de que já não precisassem:
“Deixe aqui aquilo que você não mais usa. Tire o que você vai usar.”
Naquele tempo, ainda havia quem assistisse a programas idiotas como o Big Brother. Ainda havia quem proferisse obscenidades como: “O seu lugar é o pódio”. Ainda havia seitas que anunciavam como palavra de Deus: “Você está destinado ao sucesso!” Ainda havia políticos corruptos mancomunados com pastores vendilhões de templos.
As conversas interrompidas nos abraços de despedida se distendiam na Internet e em pedações de papel, que vou achando no fundo de um velho baú. Das cinzas do Projeto Âncora, a fénix ressurgia nas palavras simples de um singelo Vítor, que era poeta… e não sabia:
“Era uma vez uma ideia. Por que não fazemos uma escola bacana em Cotia? Sabe-se que, por lá, as coisas foram são malcuidadas, roubadas, depredadas, desrespeitadas… Alguns sábios dizem que isso acontece porque a imbecilidade é própria dos seres humanos, que eles são egoístas por natureza e que somente com muito castigo teremos alguma mudança pelo medo. Alguns menos sábios dizem que as ideias são belas, mas, se os indivíduos forem feios, nada feito.”
Em breve, o vosso avô voltaria a Brasília. De lá, chegava a prosa suave da Isis:
“Acende dentro de quem tudo fora apaga! Estabelece teu limite de aquecer, para garantir vida! Ensina o limite de não invadir para ferir!
Uma música, agora, te faz dançar, ou é a brisa que te mantém no suficiente movimento de acalmar. Onde não te excede não te falta! Tem música e dedos estalando no fogo da comunhão! O suficiente é para vida e para uma roda solidária!
Que volte o tempo suficiente de aquecer, sem tudo incendiar! Consome a escuridão no dentro de quem tudo fora devasta!”
A minha amiga Ísis sublinhava todas as frases com pontos de exclamação e lá teria as suas razões. Terminava a sua mensagem com uma citação de Nego Bispo:
“Tem sementes que nascem do fogo! Eles sabem tudo que estão queimando, mas não sabem o que vai brotar a partir daí!”
Nesse início de Primavera, no destruído Jardim do Éden, num tronco de ipê decepado, despontava o rebento que vedes na foto, que vos envio junto a esta cartinha.