Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXI)

São José dos Campos, 9 de outubro de 2042

Entre as idas e vindas do cuidar de amigos, não me sobrou tempo de preparar o ritual das manhãs de domingo, como venho fazendo desde há mais de vinte anos. E como preciso de ir regar as plantas, antes que o sol as aqueça, substituo a tradicional partilha de beleza por belas mensagens colhidas num baú repleto de velhos trapos e badulaques.

São restos de memórias guardadas com desvelo. Resgatei a primeira num pedaço de papel deixado dentro de um velho livro, há, exatamente, vinte anos:

“Acabei de ver as postagens. Espero que ainda possa ver algo acontecer, aqui, em São José dos Campos. Confesso que desanimei, meu amigo”.

Nesse dia do outubro de 2022, eu partia de São José para novas deambulações pelos brasis das escolas. Conhecera a Patrícia, a Thereza, o Jhonis, três secretários de educação de um novo tempo. Voltara ao amoroso convívio com a Claudia, reencontrara a Vivi e a comunidade Espiral. Deixava para trás um rasto de esperança, a certeza de mais um recomeço.

Vivíamos um tempo de transição. Movimentos dispersos se integravam. Ganhava novo sentido aquilo que, nos primórdios de uma nova humanidade, o amigo Brandão ensaiara: uma economia de troca. Na década de oitenta, na sua casa de Pocinhos de Rio Verde, convidava os vizinhos a colocar, num canto que ele providenciara, os objetos de que já não precisassem: 

“Deixe aqui aquilo que você não mais usa. Tire o que você vai usar.” 

Naquele tempo, ainda havia quem assistisse a programas idiotas como o Big Brother. Ainda havia quem proferisse obscenidades como: “O seu lugar é o pódio”. Ainda havia seitas que anunciavam como palavra de Deus: “Você está destinado ao sucesso!” Ainda havia políticos corruptos mancomunados com pastores vendilhões de templos.

As conversas interrompidas nos abraços de despedida se distendiam na Internet e em pedações de papel, que vou achando no fundo de um velho baú. Das cinzas do Projeto Âncora, a fénix ressurgia nas palavras simples de um singelo Vítor, que era poeta… e não sabia: 

“Era uma vez uma ideia. Por que não fazemos uma escola bacana em Cotia? Sabe-se que, por lá, as coisas foram são malcuidadas, roubadas, depredadas, desrespeitadas… Alguns sábios dizem que isso acontece porque a imbecilidade é própria dos seres humanos, que eles são egoístas por natureza e que somente com muito castigo teremos alguma mudança pelo medo. Alguns menos sábios dizem que as ideias são belas, mas, se os indivíduos forem feios, nada feito.”

Em breve, o vosso avô voltaria a Brasília. De lá, chegava a prosa suave da Isis:

“Acende dentro de quem tudo fora apaga! Estabelece teu limite de aquecer, para garantir vida! Ensina o limite de não invadir para ferir! 

Uma música, agora, te faz dançar, ou é a brisa que te mantém no suficiente movimento de acalmar. Onde não te excede não te falta! Tem música e dedos estalando no fogo da comunhão! O suficiente é para vida e para uma roda solidária! 

Que volte o tempo suficiente de aquecer, sem tudo incendiar! Consome a escuridão no dentro de quem tudo fora devasta!”

A minha amiga Ísis sublinhava todas as frases com pontos de exclamação e lá teria as suas razões. Terminava a sua mensagem com uma citação de Nego Bispo:

Tem sementes que nascem do fogo! Eles sabem tudo que estão queimando, mas não sabem o que vai brotar a partir daí!”

Nesse início de Primavera, no destruído Jardim do Éden, num tronco de ipê decepado, despontava o rebento que vedes na foto, que vos envio junto a esta cartinha. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXII)

Bauru, 10 de outubro de 2042

Ainda que sem que disso tome consciência, a criança age filosoficamente, buscando verdades, como que reconstitui a história da filosofia dos adultos. Thales afirmava ser a água o elemento fundamental da matéria. Anaxímenes acreditou que fosse o ar. Para Xenófanes o elemento fundamental era a terra. Heráclito afirmou que era o fogo. E chegou Empédocles, para explicar que o mundo é combinação da água, ar, terra e fogo. 

Permiti, pois, que vos narre mais um episódio, confirmação da infantil prática da verdade. 

Uma professora tentava convencer os alunos a comprar uma cópia da foto do grupo: 

“Imaginai que bonito será, quando vocês forem grandes e todos digam “Ali está a Catarina, é advogada. Este é o Miguel e, agora, é médico.”

Uma vozinha, vinda do fundo da sala, se fez ouvir: 

E ali está a professora… Que já morreu.”

Na boca das crianças, a verdade chegava a ser crueldade…

“A tia desculpe!” – disse a aluna.

“Por quê, minha filha?” – quis saber a professora.

“É que eu chamei a senhora de idiota.” – esclareceu a criança.

“Eu não escutei nada!” – disse a professora, sorrindo.

“Foi só em pensamento…” – esclareceu a criança.

Há vinte anos, duas conceções de sociedade e de civilização estavam em confronto. Vivia-se uma situação semelhante à da imposição de uma “verdade” única, que levou Espinosa ao exílio e Galileu à retratação perante o Tribunal da Inquisição. Talvez seja possível caracterizar a situação vivida no início dos anos vinte, metaforizando.

Conta-se que um filósofo conversava com o diabo, quando passou um sábio com um saco cheio de verdades, do qual uma caiu. Alguém a apanhou e saiu correndo, gritando: 

“Encontrei a verdade!”

Perante esse quadro, o filósofo disse para o diabo: 

“Aquele homem encontrou a verdade e, agora, todos vão saber que você é uma ilusão da mente.” 

Mas, o diabo respondeu: 

“Está enganado. Ele encontrou um pedaço da verdade. Com ela, vai fundar mais uma religião. E eu vou ficar mais forte!”

O secretário encerrou a reunião, insistindo:

“Professor, diga a verdade! Você não é diferente das outras pessoas!”

Enganava-se o secretário. Somos todos diferentes, únicos e irrepetíveis.

“Diga a verdade, professor. Você tem casa, deve ser muito rico…”

“Nada tenho de meu, a não ser um computador e a roupa com que me visto.”

“Não acredito. Diga a verdade, Professor, que a gente o perdoa!”

O Brasil de 2022 era uma sociedade semi-apodrecida pela mentira. E, na boca daquele secretário de educação, a verdade – ou lá o que isso fosse para ele – era impropério. Vim a saber que estava ligado a uma igreja (melhor dizendo, uma seita) e que usava a Internet para semear mentiras em redes sociais, com a intenção de denegrir um candidato a presidente. 

Educadores preocupados queixavam-se de ver tanta mentira à solta. Diziam não poder admitir que a mentira prevalecesse. Perguntei-lhes:

“Quem educou esses mentirosos?” 

Não responderam, e se mantiveram em salas de aula, ancorados em práticas instrucionistas, reproduzindo um modelo escolar disseminador de um sistema social iníquo, semeado de mentiras.

Toda a educação resulta do exemplo. Toda a aprendizagem vive da imitação, é antropofágica – não se aprende aquilo que o outro, supostamente “ensina”; aprende-se o outro. O que esperar de uma escola doente de mentira?

Certamente, haveria muitas verdades para a verdade em que acreditávamos. Se eu via as coisas de um modo e o outro as via de outro modo, urgia que se tentasse ver os dois modos, vê-los juntos, como Gandhi: 

“A minha preocupação não está em ser coerente com as minhas afirmações, mas em ser coerente com a verdade.”

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXX)

Jacareí, 8 de outubro de 2042

Em tempos de cólera e mal-entendidos, o vosso avô afundava-se em breves crises existenciais. Como qualquer mortal, procurava entender por que havia quem acreditasse em mentiras e por que se suspendia diálogo. 

Nesses conturbados tempos, quando me perguntavam se eu era o José Pacheco, respondia:

“Tem dias, meu amigo. Tem dias! Há dias em que me encontro, outros em que me procuro.”

Como bem sabeis, face aos absurdos em que a educação era fértil, quando me faltavam as palavras com que os homens se desentendiam, o vosso avô recorria a metáforas que falavam de pássaros. E partia em viagens sem-fim, num sem destino em que se perdesse, para se encontrar.

Quando nascestes, o constante peregrinar me levou para o sul. De lá, vos contei as peripécias de umas gaivotas dissidentes. Elas eram aves marginais à história dos pássaros absorvidos em vidas de abdicar de viver. Nada tinham em comum com as suas irmãs, que não arriscavam o voo que as afastasse da costa e que, entre o nascimento e a morte, apenas conheciam o cheiro nauseabundo dos esgotos e o frémito dos medos. 

Como já percebestes, as gaivotas dessa estória não seguiam o rasto dos barcos, nem debicavam peixe podre. Durante as viagens, viveram encontros felizes. Mal começaram a afastar-se da costa, encontraram um corvo-marinho. Voava alto e vertical, e nem deu pela presença das gaivotas. Avistou um peixe nas águas claras e mergulhou vertiginosamente, para logo emergir saciado e de penas secas e limpas. 

Secas e limpas… eram negras as penas, como as de que se vestiam os pássaros que conheceram longas noites de voos proibidos. 

O corvo-marinho aceitou o convite das gaivotas e partiu com elas à aventura. 

Mais tarde, avistaram guarda-rios, que procriavam no recôndito de túneis escavados nas barreiras que bordejavam os rios, numa umbilical ligação com as águas. 

Verdade seja dita: não as guardavam, por correrem as águas sempre por outro lado, ou porque as ignorâncias dos homens as convertessem em charcos estagnados. Os guarda-rios já quase tinham esquecido os remotos ecos do fresco gargalhar de jovens almas refrescando-se em jogos de água e ilusão. 

Chegadas as gaivotas a essa terra entre dois rios, logo os trinados de pássaros livres regressaram às suas margens. Entre as demais, uma gaivota sugeria aos jovens aprendizes de voar o voar mais longe, nas asas do sonho.

De sonhos foi feita a realidade vivida nos idos de vinte e dois. No final desse ano e na Terra do Brincar, o “voo em v” dos biguás nos indicava a direção e múltiplos sentidos. E em alguns dos protótipos de comunidade, outros “pássaros aprendizes” se transformavam em novas vivências. 

Na auspiciosa véspera do oito de outubro de vinte e dois, nos encontros de Mogi e de Jacareí, algo inédito sucedia. Me habituara a ver na administração obstáculos quase intransponíveis. Mas, deparava com uma Priscila idealista e uma Patrícia sensível à necessidade de mudar. Deparava com uma “sincronicidade”. A Tina me chamou a atenção para dois pormenores: era o dia 7 e ali estavam sete secretários de educação… éticos. 

O amigo Mauro me deu carona e me falou das suas decisões. Era admirável a sua coragem, a sua generosidade e a ética do cuidar que dele emanava. Tal como o vosso avô, em tempos de cólera e mal-entendidos, o amigo Mauro também andava à sua procura. Convidei-o a visitar a Terra do Brincar.

É isso mesmo, o que estais a pensar. Havia educadores conscientes de que uma pandemia trouxera consigo um aviso. Havia quem se curasse de cegueira branca que não consentia que se levantasse o véu diáfano que tapava desumanas fantasias. 

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXIX)

Cabuçu, 7 de outubro de 2042

Recordar-vos-eis certamente, de tempos atrás, vos ter falado da crise ética que me acometeu, quando deparei com a chamada “turma de lixo”, composta de alunos que haviam reprovado por não saber ler. Compreendi que se continuasse a ensiná-los do modo como os anteriores professores tinham ensinado, eles continuariam a não aprender. 

Iria sair dessa crise, resolvendo mais um dilema. Ela já não era da mesma natureza da primeira crise. Não era apenas um dilema moral – era uma questão ética! Se não encontrasse outro modo de ensinar, abandonaria a profissão de professor. 

Encontrei um modo, ainda que imperfeito, e fiquei professor. Mas, uma nova crise eclodiu, quando a administração educacional praticou abuso de poder.

Um Relatório de Avaliação Externa propunha que se erigisse um novo edifício, para albergar os alunos da Ponte. Acompanhei funcionários ministeriais na visita a locais onde o prédio poderia ser implantado. Mas, o mal conspirava… “Professores”, políticos, administradores sem escrúpulos planejaram afastar a Ponte do deu território. 

Intimidaram os professores da Ponte, assediaram os pais dos alunos. Três vezes convocados, em Conselho de Escola, os pais decidiram que a escola permanecesse, na margem direita do Rio Ave, no Lugar da Ponte. A administração educacional intimidou professores medrosos, que desrespeitaram a vontade de uma comunidade. Vila das Aves perdeu a sua melhor escola. 

O projeto foi habitar um prédio paredes-meias com a uma “escola normal”, incomunicável. Constituíra-se numa ilha de excelência acadêmica socialmente desenraizada, na outra margem do rio. 

Eu não conseguia compreender a atitude dos professores da Ponte. Cadê a coragem e a resiliência, que caracterizaram o projeto ao longo de mais de trinta anos. Haveria medo de perder um emprego?  

E aí vêm mais perguntas. Se as decisões do Conselho de Escola – que eu presenciei na última das reuniões – eram soberanas, por que não foram respeitadas? Que direito assistia ao ministério de desrespeitar um contrato? Por que obedeceram os professores à imposição? 

Pais leais ao projeto não permitiram que os seus filhos fossem para o outro lado do rio. Pediram-me que ficasse com os seus filhos. Mas, eu não quis contribuir para o divisionismo já existente. E essas famílias abandonaram o projeto. 

Saturado de quezílias, cansado de confrontos com burocratas autoritários, busquei resposta para velhas interrogações. Ultrapassei a terceira das crises numa releitura de Freire, Papert, Lauro, Agostinho, Flexa… Os contornos de uma nova construção social de aprendizagem e de educação tomavam forma concreta. 

Não mais insisti em velhos processos, em contribuir para criar projetos-exceções, que a administração quase sempre acabava por destruir. A nova construção social não seria permeável a burocráticas intromissões, porque se fundava em pressupostos legais e nas ciências da educação.

A Escola da Ponte continuava sendo uma das raras escolas em que havia “protagonismo juvenil”, onde a autonomia do aluno, efetivamente, vigorava. Porém, eu compreendera que o centro (se centro houvesse) não seria o aluno. A aprendizagem não acontecia centrada no professor – prática quase hegemónica, na época. Estaria assente na criação de vínculos, dependeria da qualidade da relação pedagógica, aconteceria em cada sujeito de aprendizagem, no contexto de uma comunidade. 

No 7 de outubro de 22, exatamente 46 anos após a minha chegada à Ponte, eu reuni com secretários de educação, para tomar uma decisão ética. Em breve, disso vos falarei.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXVIII)

Brasília, 6 de outubro de 2042

Num dia do já distante outubro de vinte e dois, recebi um WhatsApp, que dizia:

“Bom dia, pessoas!

Ontem foi publicada a aposentadoria da nossa querida diretora Marta Caldas. Somos todxs muito gratxs por tantos anos de dedicação à Educação do DF e, em especial, aos 9 anos que esteve à frente da gestão da Escola Classe 115 Norte. Como forma de retribuição a tudo que ajudou a construir na nossa comunidade, faremos um Sarau de Homenagem e Despedida na escola, no próximo dia 6/10 (quinta-feira), a partir das 18h. 

Nesse sentido, te convidamos a participar desse momento da forma que mais lhe agradar

Contamos com sua presença nessa linda celebração de travessia na vida da Marta Caldas!”

Não me foi possível estar presente no Sarau. Mas, como não havia longe nem distância, o acompanhei, sentindo a emoção presente na merecida homenagem.

Conheci a minha amiga Marta, quando rumei a Brasília, movido pela curiosidade. Ouvira falar de projetos como o da Vivendo e Aprendendo, a Universidade da Paz, o Girassol Restaurante da Ros Ellis… e a 115 Norte. 

Quando, com o Rafael secretário, tentamos melhorar a educação que se fazia no Distrito Federal, lá está a Marta. Quando, com o deputado Leandro, tentamos moralizar a secretaria, lá está a Marta articuladora e o “norte” resiliente da 115 Norte.

O depoimento de uma professora da equipe da Martha e da Marta confirmava que aos educadores acolhidos nessa excecional equipe era dada oportunidade de reelaboração cultural, a partilha de uma nova visão de mundo:

“Alarme toca. Abro os olhos. Preciso ir à escola. Que ânimo tenho? Enfrentar e viver mais um dia em um paradigma instrucionista. Que sentido tem? Desisto? Sigo? O que faço? Fiz, enfim, pergunta que tirava de mim aquela figura medonha de autoridade: 

“O que vocês querem aprender?” 

Anotei na lousa a pergunta, em letras grandes. E repeti, firme e amorosa:

“O que vocês querem aprender? Eu quero aprender sobre vocês, estou curiosa, me digam o que vocês querem aprender.”

Quando fui convidado pelo IBICT para coordenar uma pesquisa, no âmbito do projeto “Brasília 2060”, passei a viajar, frequentemente, para a capital. Outro convite me foi dirigido para integrar o Grupo de Trabalho da Criatividade e Inovação do Ministério da Educação. As viagens para Brasília se intensificaram. 

Com a Cláudia, realizara a primeira formação “Gaia Escola”. Fizera morada no Jardim Botânico e, quando o Júlio era secretário, muitos foram os encontros realizados na 115 Norte. 

Em 2017, a partir da iniciativa de professoras do CEF 04 do Paranoá, a CAP começou a tomar forma. Na esteira dessa iniciativa, projetos como o “Voarás” surgiram e se consolidaram, por obra de extraordinários educadores. Mas, a minha maior referência de educação brasiliense continuava a ser a 115 Norte e… a minha amiga Marta.

Quando chegaram tempos de medo e ódio, foi a Marta quem me ajudou, que me acolheu, quando alguém destruiu um sonho de comunidade e me roubou o Jardim do Éden.

No mês de outubro de há vinte anos, a minha amiga se aposentou. Mas, esse foi mais um momento de recomeçar. Em novembro, voltei a Brasília, para rever a vovó Marta aposentada, para voltar ao convívio dos educadores da EM 115 Norte e retomar e relançar o projeto das Comunidades de Aprendizagem.

Sempre que a saúde me autoriza, vou visitar a minha amiga Marta. E não me canso de lhe agradecer uma vida dedicada ao bem da infância e da educação. Porém, nunca encontrei modo de traduzir a admiração que por ela sinto. Dizer da minha gratidão é coisa pouca.

Hoje, como há vinte anos, apenas sei dizer “Bem hajas, querida amiga!”

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXVII)

São José, 5 de outubro de 2042

Disse-vos que iria fazer perguntas e vós perguntastes se teríeis de responder. Sossegai. Não é isso que eu pretendo. Não se trata de um interrogatório. E mesmo que eu estivesse a agir como quando era tutor, quando perguntava algo aos aprendizes que estavam ao meu cuidado, não esperava resposta imediata. Elaborávamos roteiros de estudo. Juntos, procurávamos “respostas”. 

Então, aqui vos trago mais uma pergunta daquelas que eu fazia, há trinta, quarenta, cinquenta anos. E a que ninguém sabia dar resposta. 

Se numa aula pouco, ou mesmo nada se aprendia, por que razão os professores davam aula?

Cheguei àquela instituição de formação de professores a convite da sua diretoria. Levava vinte anos de Escola da Ponte para partilhar com os colegas da academia. Escutara as suas palestras, frequentara os seus cursos. 

Era elevada a expectativa, esperava ver a aplicação das propostas escolanovistas, que eles divulgavam em teses e que eu lera sofregamente. Esperava aprender.

À chegada, entregaram-me umas listas de alunos e me disseram que iria “dar aula na sala X”. Disse-lhes que deixara de trabalhar em sala de aula, há mais de vinte anos, depois de ter lido os pedagogos que eles tinham como referência. E que não haveria turmas – trabalharia no um-para-um com “sujeitos de aprendizagem, não como objetos de ensinagem.

A minha interlocutora informou que “todos os professores cumpriam as regras da instituição” (sic). 

“E por que essas as regras?” – questionei. E ela insistiu:

“Colega, para você trabalhar aqui, terá de aceitar as nossas regras”.

Seguiu-se um diálogo de surdos:

“Aqui, é assim. Todos os nossos docentes dão aula. Em sala de aula!”

“Porquê?”

“Por que o quê?”    

“Por que dão aula?”

Respirou fundo, não respondeu e pôs nas minhas mãos aquilo a que chamou “folhas de registo de presença”. Voltamos ao não-diálogo:

“O que é isto?”

“Não diga que não sabe, colega! É para os alunos assinarem. Terá de passar as folhas no início e no final da aula.”

“Não farei isso. Li a vossa proposta pedagógica. Nela está escrito que quereis formar professor autónomos, responsáveis. Isso não se consegue controlando, duvidando da honestidade dos alunos.”

“É preciso verificar se eles não ultrapassam a percentagem de faltas. É sua obrigação.”

“E por que terei de cumprir essa “obrigação”?”

Ignorou a pergunta. 

“O colega sabe onde está o livro dos sumários das aulas?”

“Não sei, nem pretendo saber. A colega saberá dizer-me por que terei de dar aula?” 

Não respondeu. Deu meia-volta e dali se foi resmungando. 

Uma vida de professor de escola pública me mostrou que fiz a escolha certa, ainda que tivesse de passar por três crises. Da primeira já vos falei, se não me falha a memória. Creio que vos disse que só sabia “dar aula”, quando ingressei na “carreira”. E que me interrogava:

“Se eu dou aula tão bem dada, por que há alunos que não aprendem?”

Era evidente a resposta: se eu dava aula e eles não aprendiam, eles não aprendiam porque eu… “dava aula”. 

Nos idos de vinte, um “alto responsável da educação” criticava o fato de as crianças passarem mais de cinco horas diárias em sala de aula:

“Não é recomendável, manter os alunos na sala de aula cinco horas ou mais. A escola a tempo inteiro, até às 17.30, deveria ser revista. As escolas não podem ser lugares onde se toma conta de meninos e meninas.

Defendo uma carga horária do 1.º ciclo igual à do 2.º ciclo e aulas a acabar na mesma altura, no final do 3.º período.” 

Por que haveria “calendário escolar”, “ano letivo”, “ciclo”, “carga horaria, “terceiro período”, “sala de aula”? 

Ninguém sabia. “Pero que las havia las havia…”

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXVI)

São Francisco do Sul, 4 de outubro de 2042

Toda a aprendizagem acontece por imitação, pelo exemplo. As aprendizagens que o vosso avô fez não fugiram a essa regra e a Ponte não foi exceção. Teve por referências dois ícones, um espiritualista oriental e um santo ocidental: Jiddu Krishnamurti e Francisco de Assis. 

Reencontrei Francisco num idiossincrático país da espiritualidade, onde o sincretismo religioso incorporou a sua mensagem na Umbanda e no Candomblé, venerando-o sob a figura de Xangô. Sempre que chegava o dia 4 de outubro, ecumenicamente invocava o padroeiro dos animais e da natureza, o santo dos pobres, que quis “servir ao amor e, abandonou uma vida de luxo, para desposar a “Senhora Pobreza”. 

A Ponte começou na maior pobreza material que possais imaginar. Aqueles que, há vinte ou trinta anos, visitavam um opulento prédio da margem esquerda do Rio Vizela, talvez não soubessem da origem franciscana do projeto.

Em meados da década de setenta, saíamos de uma longa ditadura, que deixara o país na miséria. E, desde cedo, o projeto “Fazer a Ponte” acolheu os filhos da pobreza. 

Num anexo, a Fatinha matava a fome das crianças com finas fatias de queijo da Caritas, pedaços de pão de milho e “leite escolar”. A escola não tinha banheiro digno desse nome, era um buraco sujo com pedaços de papel de jornal espetados num arame, para higiene dos utentes. A sala de aula era um tugúrio ocupado por velhas carteiras de tinteiro e pena. 

Nas manhãs frias, o Arnaldo tresandava a cachaça. A maioria das crianças trazia entranhado nas vestes um intenso cheiro a terra e suor, que se confundia com o da decomposição dos cadáveres das ratazanas, que coabitavam o desvão do telhado. 

Porque todas as crianças são belas, em são convívio com a miséria, outras origens sociais se manifestavam numa variedade dos odores. O Simão exalava a suave fragrância a água-de-colónia. O Tó, o aroma da alfazema. 

Eu tinha sido colocado longe de casa. Gastava parte significativa do magro salário nas idas e vindas entre a cidade do Porto e a Vila das Aves. Quando a automotora resolvia avariar, gastava ainda mais dinheiro em serviço de táxi, para não deixar os meus alunos sem aula. 

A minha situação de “professor efetivo” permitiu-me contrair um empréstimo bancário e adquirir um apartamentozinho, ficando a morar junto da escola, integrado numa comunidade. Mas não era esse o caso de milhares de professores, que, ano após ano, sofriam a via-sacra dos “concursos e colocações”. Era imenso o gasto e o desgaste psíquico. Eram inúmeros os atestados médicos, que os libertavam de familiares exílios.

Josefa Marques sofria de uma doença oncológica. Apesar de provar com atestado que precisava de ficar “colocada” perto de casa, foi mandada para uma escola distante duzentos quilómetros. Recorreu da decisão, mas não chegou a obter resposta do ministério.

No site do sindicato, se dizia que Josefa era docente do 1º. Ciclo dos distritos da Guarda e Castelo Branco. Trabalhara no concelho de Almeida, onde residia, ao abrigo do regime de mobilidade por doença, o que lhe permitia ser apoiada pela família e exercer “a profissão de que tanto gostava”. 

Naquele fatídico ano, acabou “colocada” em Oleiros, a 207 quilómetros de casa. Em situação de grande pressão psicológica, a conjugação dessa situação com as fragilidades de quem estava a fazer quimioterapia, obrigou-a a entrar de baixa médica, o que lhe provocou um quadro de ainda maior ansiedade, face à possibilidade de os seus alunos ficarem sem aulas.

Josefa morreu aos 51 anos de idade, de um derrame cerebral, após dias vividos em profunda tristeza.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXV)

Piratininga, 3 de outubro de 2042

Há quase cinquenta anos, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional abriu caminho para o exercício da autonomia. O artigo 15º rezava assim: 

“Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira”

O Plano Nacional de Educação estabelecia um prazo limite para cumprimento da Meta 19. Isto é: criar condições de gestão democrática, condições do exercício de autonomia, que deveria ser prática comum em todas as escolas.

Porém, decorrido o prazo, os escassos normativos publicados padeciam da “Síndrome da Mulher de César”, de que vos falei na cartinha ontem enviada. Não mereciam ser levados a sério. Eram tentativas de sutis e pouco democráticas regulações e controle. 

Até à segunda década, não fora publicado qualquer decreto que estabelecesse um regime jurídico da direção, administração e gestão de escolas baseado em critérios de natureza pedagógica e científica. Parecia não existir lugar para a autonomia no império da burocracia. 

A gestão pedagógica, pedra angular da autonomia, era omitida, ou apenas enfeitava preâmbulos de decretos, deixando perceber que os legisladores confundiam a administração de uma escola com a administração de um hospital, ou de um boteco, agindo como se pudéssemos esperar o trem na paragem do ônibus. 

Por que razão o ministério não respeitava acordos? Por que não cumpria contratos por si assinados? Por que, impunemente, agia à margem da lei? 

Era surpreendente a apatia dos professores. Era preocupante que não se apercebessem das artimanhas de políticos autoritários e micro-ditadores “democraticamente” eleitos. 

Era “elementar, caro Watson”: Como poderia uma escola heterônoma educar em  autonomia? Como poderia uma gestão não-demccrática ensinar democracia?

Tal como convosco falava, no início deste século, talvez seja a altura de vos recordar, metaforicamente,  algumas personagens, de as convocar para cartinhas semeadas de porquês. 

Para não ter de passar pelo divã do psiquiatra, o vosso avô metaforizava, para lembrar que nas escolas se fazia sentir a perfídia do borogóvio, pássaro lastimável por ser aparência de pássaro sério. 

Estudando os gorogóvios dos idos de vinte, talvez encontrássemos explicação para certos fenômenos aparentemente incompreensíveis, numa América Latina ciclicamente governada por ridículos tiranos. 

Todos os países nela constituídos passaram da monarquia para um regime republicano. Todos, exceto um, o Brasil, que passou de um regime monárquico para um império, o que não augurava nada de bom. 

Pela mão de um Benjamim positivista, a educação brasileira nasceu sob a égide da ordem e do progresso. À espera de uma nova ordem e carentes de um progresso sustentável, as escolas permaneciam cativas de um obsoleto modelo educacional introduzido por vontade do general Bolívar e dependentes de caprichos de gorogóvios corruptos. 

Hoje, sabemos que, nos anos que se sucederam aos dramáticos acontecimentos dos tempos do medo e do ódio,  as gaivotas que sofreram o fustigar das asas dos gorogóvios aprenderam no canto das almas sensíveis a arte de voar com todos os ventos, sem esquecer que o importante, como diria a Clarice, não seria a velocidade, mas saber qual a direcção.  

Nos idos de vinte, se abriram claridades, se romperam cinzentos horizontes.  E, hoje, na lagoa azul, que vedes da Terra do Brincar, espelham-se voos de branca paz.  

P.S.: Querido Marcos, aproveito o ensejo para te dar os parabéns pela passagem do teu trigésimo nono aniversário.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXIV)

Inoá, 2 de outubro de 2042

Quando procurava explicar-vos certos fenômenos, eu recorria a metáforas (nem sempre felizes), que permitiam descrever, por exemplo, as idas e vindas de “pássaros”, personificações de gente a quem um desumano sistema de “colocação de professores” negava a realização pessoal e profissional:

“Foram muitas as lágrimas da partida e muitas foram as vertidas nos reencontros (não acrediteis naqueles que dizem que os pássaros não choram). Foram muitos os voos das aves aprendizes de retorno ao ninho original. Foram tempos de tensa expectativa os primeiros tempos, tempos de ambiguidade, de apreensão, mas também de teimosa confiança.  

Um desses recados de pássaro aprendiz (a que poderíamos chamar Cláudia, ou Vanessa) dizia: 

“É um sentimento forte e, ao mesmo tempo, leve e doce. Medo não sinto, porque não parto sozinho.” 

Numa outra mensagem (nas palavras puras de uma Joana, ou de um André) lia-se: 

“Quero agradecer terem acreditado em mim, fazendo-me sentir como é bom aprender ensinando.” 

E, para não ser fastidioso, apenas mais um excerto do canto dessas almas sensíveis (a que poderíamos chamar Tiago ou Constança): 

“Como era bom ver os professores a começar cada dia com um sorriso, o sorriso que levo comigo para a nova escola, e cuja recordação faz coceguinhas no meu coração.  

A lei era clara: O funcionamento dos estabelecimentos de educação e ensino, nos diferentes níveis, orientava-se por “uma perspectiva de integração comunitária, sendo, nesse sentido, favorecida a fixação local dos respectivos docentes” (sic). Mas, se a lei estabelecia que os professores deveriam trabalhar na comunidade onde residiam, por que os mandavam para longe? 

Pela celebração de um contrato de autonomia com o ministério da educação, a Escola da Ponte conquistou o direito de “selecionar e recrutar o pessoal docente e não docente, nos termos do presente contrato e do perfil do educador do projeto”. Assim rezava o contrato e, a partir de 2004, assim se fez. Até que um ministério de má fé, à revelia do contratualizado, privou a Ponte desse direito. 

No contexto de um sistema de ensino autoritário e moral e intelectualmente corrupto, a autonomia era aparente. Dizia a sabedoria popular que à mulher de César não bastava ser honesta, teria que parecer honesta. Esta expressão era usada em política, para dizer que os governantes, além de serem honestos, precisariam agir como tal. 

A frase original surgiu após um escândalo na Roma do ano 60 a.C., envolvendo o imperador e a sua mulher. Júlio César andava na guerra, e Pompéia vivia muito sozinha. Um admirador da moça aproveitou a ausência do marido, entrou no palácio imperial, perdeu-se nos corredores, foi descoberto e preso. Levado a tribunal, foi absolvido da acusação, pois César ignorou o que se dizia sobre sua mulher, apesar de ter afirmado: 

Não basta que a mulher de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita.”

Roma vivia um tempo de intriga e corrupção, por se ter constituído numa sociedade servida por uma multidão de escravos e dominada por uma casta de ociosos senadores.

Supostamente adúltera, a mulher do César não viveu o mesmo calvário da Capitu. Mas, de algum modo, a degradação dos costumes terá contribuído para acelerar a queda do império – à mulher de César, para ser honesta, não bastaria parecê-lo, seria preciso sê-lo. Não seria suficiente expulsar a mulher do palácio. Outro golpe palaciano também deveria (não só psicanaliticamente) “matar o pai”, dar um “fora” no César. 

Foi o que fez o seu filho Brutus, à semelhança do que fizeram os traidores de todos os tempos.

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXIII)

Itapeteiú, no Primeiro dia de outubro de 2042

Foi esta a primeira frase escrita no projeto Fazer a Ponte, nos idos de setenta: “Os professores precisam mais de interrogações do que de certezas.” 

Tentando uma difícil coerência entre o projeto escrito e a prática do projeto, duvidava das minhas certezas. E, com todo o respeito pela hierarquia instalada, questionava imposições e negócios escuros em que a educação era fértil. 

Nos idos de vinte, havia muitos tabus por erradicar. E a criança grande que em mim habitava interpelava tudo o que não tinha explicação, nunca desistia de perguntar, porque nunca saiu da idade dos porquês. 

Netos queridos, nesta cartinha e nas próximas, transcreverei perguntas feitas na década de sessenta e jamais respondidas. Sabei que, nos idos de vinte, a lei nos dizia que quaisquer que fossem as respostas, nelas deveriam prevalecer “critérios de natureza pedagógica e científica sobre critérios de natureza administrativa.”

Perguntei a meio mundo: Por que há “ano letivo”?

Quando decidi ser professor, as aulas começavam no primeiro dia de outubro. Meio século depois, as escolas permaneciam cativas de uma estranha pasmaceira, reproduzindo rituais sem sentido. Apenas a data de início de ano letivo (nesse tempo, havia “ano letivo”) fora modificada. E, quando chegou o tempo de irdes para a escola, poderíeis ser matriculadas, se completásseis seis anos até ao dia 15 de setembro. 

Por que se estabelecera o dia 15 de setembro e não o dia 14, ou o 16? Por que não o dia 25 de abril, ou 28 de maio? Ninguém sabia o que responder. Apenas alguns burocratas tentaram. Mas, quando lhes pedia fundamentação da resposta, fingiam-se mudos. 

Não havia fundamento – científico, como obrigava a lei! – para este e para outros pertinentes questionamentos. 

Nos idos de vinte, o primeiro-ministro japonês, ponderava mudar o início do ano letivo para setembro, e não mais em abril, devido o surto de Coronavírus. Na Austrália, o ano letivo tinha início no final de janeiro. No
Canadá e na Inglaterra, no início de setembro. O Sommersemester alemão começava entre março e abril… 

Nos Estados Unidos, as aulas começavam em agosto, logo após o “Summer Break”. Tal como em outros países de Inverno rigoroso, o fator determinante da escolha da data era o clima. E, talvez, o pressuposto de que a inteligência das crianças pararia de funcionar no primeiro dia de férias escolares e só voltaria a funcionar quando voltassem para dentro de um prédio a que chamavam “escola”. Talvez…

Não havia um período de férias entre os semestres, como era costume no Brasil, havia períodos de descanso, como o Spring Break, Thanksgiving e o Winter Break

Por que havia “férias escolares” simultâneas? Nos projetos de comunidade em que participei, cada aluno, cada família descansava quando precisasse. Beneficiavam de custo mais baixo de alojamento em hotel, pousada, ou parque de campismo. Dispunham de mais espaço nas praias. Engarrafamentos eram evitados. 

Queridos netos, eu estaria errado? É claro que não! Então, se fazia sentido o meu raciocínio, por que haveria “ano letivo”?

No início de 2023, já alguns professores consolidavam as bases de uma nova construção social de aprendizagem. Sentindo-se aptos para ensinar e aprender todo o tempo e sem o costumeiro ano letivo, depararam com a oposição da administração escolar e diretorias, que os proibiu de desenvolver o projeto.

Cívica e respeitosamente, solicitaram à administração e às diretorias a fundamentação (científica!) da proibição. E, perante a ausência de resposta, cívica e respeitosamente, desobedeceram. 

Posts navigation

1 2
Scroll to top