Posse dos Coutinhos, 27 de setembro de 2042
No final do setembro de há vinte anos, partidos de direita radical na Europa celebravam a vitória eleitoral de uma Giorgia italiana. O Chega português saudou a vitória da direita italiana, dizendo que ventos de mudança iriam chegar a Portugal.
Não chegaram, como sabemos. Mas, no ventre da democracia, a besta fascista despertava de longa hibernação e assolava a Europa.
Na Rússia, o patriarca dizia que sacrificar a vida na guerra, para cumprir dever, “lavava todos os pecados”. Cirilo rezava pela vitória da Rússia na guerra da Ucrânia, dizendo:
“A Igreja Ortodoxa Russa percebe que se alguém, movido por um sentido de dever, pela necessidade de cumprir o seu juramento, permanece fiel à sua vocação e faz o que pensa ser o seu dever, e se, no cumprimento deste dever, essa pessoa morre, então, sem dúvida, comete um ato equivalente a um sacrifício pelos outros”.
Absolutamente, nada pode atenuar, justificar barbaridades deste jaez. Aceitá-las, justificá-las, ou atenuá-las, seria negar a essência humana. Quando um alto responsável pela igreja assim se pronunciava, o que se poderia esperar da Igreja? Lembremo-nos que a Igreja da Inquisição colaborou com ditadores.
Quando Cirilo rezava pelo “triunfo da justiça” – sem justiça não poderia haver paz duradoura – de que justiça falava, a que paz se referia?
A invasão russa da Ucrânia, justificada pelo Vladimir com a necessidade de “desnazificar” e desmilitarizar a Ucrânia, para segurança da Rússia, ainda iria durar alguns meses, sob a ameaça de guerra nuclear. Nesse tenebroso setembro, mais de três milhões de refugiados vagueavam pelo mundo. E, desde o início da guerra, para além de muitos milhares de mortos militares, se calculava que mais de seis mil civis haviam perecido.
Por todo o mundo, uma onda de barbárie crescia. Os jornais davam conta de perversidades, de crueldades:
“Jovem ator admitiu ter assassinado a sua mãe, com um tiro na nuca. A polícia informou que Ryan também planeava matar políticos e cometer um atentado na faculdade onde estudara.
Criança de três anos foi intubada, após o irmão gêmeo a balear com arma do pai.
Leandro matou a ex-namorada, por não aceitar o fim do relacionamento.
Homem amputou perna em frente à filha de cinco anos. A esposa elucidou as autoridades sobre uma possível motivação religiosa, A mulher disse que ele lhe contou que era Jesus Cristo e que ela tinha de acertar contas com Deus”.
Na Ucrânia, mais de trinta civis morriam, num ataque contra uma estação de comboios, quando, nesse local, centenas de pessoas esperavam fugir da região.
O meu amigo Adélio assim descreveu esta e outras atrocidades:
“Seres humanos, que ainda ontem tinham lar, fogem agora aterrorizados dos escombros da vida que os viu nascer, carregando apenas os filhos e o nada que lhes restou. E nenhum deus salvou a Alisa, uma menina de sete anos, morta no jardim de infância. Nem Polina, que estava no último ano da escola primária. Nem cento e três crianças, cujos nomes não chegaram às parangonas noticiosas.
Sem misericórdia, o bombardeamento à maternidade de Mariupol esmagou a pélvis e deslocou o quadril a uma mulher grávida, matando-a a ela e ao seu filho, arrancado já sem vida das suas entranhas.
O grito desta mulher, que abraçando o corpo do seu filho, suplicava que a deixassem morrer, bombardeou-me a esperança e reduziu a escombros a minha fé de que os oitenta e cinco milhões de seres humanos que tombaram na última grande guerra tivessem enterrado para todo o sempre a horrenda besta que, de tempos a tempos, a humanidade deixa cevar no seu seio.”
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