Itapeba, 26 de setembro de 2042
Hei-de voltar a falar-vos de polêmicas, que deram muito que falar e que acabaram em nada. Mas, hoje, quero contar-vos uma estória. Insisto em contar histórias que o desgaste da memória ainda não apagou.
Falo-vos dos primeiros tempos de uma viagem em busca de uma educação humanizada. A vida é feita de reencontros e somos um pouco de cada ser que encontramos na viagem. Descreverei um desses encontros, um episódio luminoso. Meditai no que passo a contar.
Foi numa São Paulo frenética, num fim de tarde, enquanto viajava de carro entre dois aeroportos. O motorista era conversador e de fala fluente. E a conversa (ou melhor, o monólogo) arrancou ao mesmo tempo que a viatura. Pensava eu ter de aguentar a costumeira conversa sobre o tempo que fazia… enganei-me, pois o motorista falou-me da sua infância no Nordeste.
Contou-me histórias de fome e abandono. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado, precocemente, da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro.
Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta estória igual a tantas outras estórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros. Mas, o melhor está para vir.
A certa altura do monólogo, parámos nuns semáforos. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala:
“Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?”
Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta.
“Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou”.
Assenti com um aceno a que não deu atenção. E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica:
“O senhor sabe o que faz a minha mulher? Ela é professora!
Quando nos casámos, ela não tinha estudos e quis tirar um curso. Só tinha um problema: não gostava de ler.
Eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso.”
Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato:
“A minha mulher trazia livros para eu ler. À noite, eu lia. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fazia as provas e ficava aprovada. E, assim, fez o curso de professora”
Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. Ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Steiner, Dewey, Piaget… E rematou a conversa, porque estávamos a chegar ao nosso destino:
“Para o senhor deve ser difícil compreender o que vou dizer, porque são assuntos da Pedagogia, da Educação… Compreende?”
Não retorqui. E ele concluiu, dizendo:
“Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem às crianças. E até me deu vontade de chorar. “
Aquele motorista talvez nunca viesse a saber o quanto me comoveu a sua estória. Nunca pude manifestar-lhe a minha gratidão, porque o não pude fazer, naquele momento – o nó que sentia na garganta ameaçava desatar-se…
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