São Francisco do Sul, 4 de outubro de 2042
Toda a aprendizagem acontece por imitação, pelo exemplo. As aprendizagens que o vosso avô fez não fugiram a essa regra e a Ponte não foi exceção. Teve por referências dois ícones, um espiritualista oriental e um santo ocidental: Jiddu Krishnamurti e Francisco de Assis.
Reencontrei Francisco num idiossincrático país da espiritualidade, onde o sincretismo religioso incorporou a sua mensagem na Umbanda e no Candomblé, venerando-o sob a figura de Xangô. Sempre que chegava o dia 4 de outubro, ecumenicamente invocava o padroeiro dos animais e da natureza, o santo dos pobres, que quis “servir ao amor e, abandonou uma vida de luxo, para desposar a “Senhora Pobreza”.
A Ponte começou na maior pobreza material que possais imaginar. Aqueles que, há vinte ou trinta anos, visitavam um opulento prédio da margem esquerda do Rio Vizela, talvez não soubessem da origem franciscana do projeto.
Em meados da década de setenta, saíamos de uma longa ditadura, que deixara o país na miséria. E, desde cedo, o projeto “Fazer a Ponte” acolheu os filhos da pobreza.
Num anexo, a Fatinha matava a fome das crianças com finas fatias de queijo da Caritas, pedaços de pão de milho e “leite escolar”. A escola não tinha banheiro digno desse nome, era um buraco sujo com pedaços de papel de jornal espetados num arame, para higiene dos utentes. A sala de aula era um tugúrio ocupado por velhas carteiras de tinteiro e pena.
Nas manhãs frias, o Arnaldo tresandava a cachaça. A maioria das crianças trazia entranhado nas vestes um intenso cheiro a terra e suor, que se confundia com o da decomposição dos cadáveres das ratazanas, que coabitavam o desvão do telhado.
Porque todas as crianças são belas, em são convívio com a miséria, outras origens sociais se manifestavam numa variedade dos odores. O Simão exalava a suave fragrância a água-de-colónia. O Tó, o aroma da alfazema.
Eu tinha sido colocado longe de casa. Gastava parte significativa do magro salário nas idas e vindas entre a cidade do Porto e a Vila das Aves. Quando a automotora resolvia avariar, gastava ainda mais dinheiro em serviço de táxi, para não deixar os meus alunos sem aula.
A minha situação de “professor efetivo” permitiu-me contrair um empréstimo bancário e adquirir um apartamentozinho, ficando a morar junto da escola, integrado numa comunidade. Mas não era esse o caso de milhares de professores, que, ano após ano, sofriam a via-sacra dos “concursos e colocações”. Era imenso o gasto e o desgaste psíquico. Eram inúmeros os atestados médicos, que os libertavam de familiares exílios.
Josefa Marques sofria de uma doença oncológica. Apesar de provar com atestado que precisava de ficar “colocada” perto de casa, foi mandada para uma escola distante duzentos quilómetros. Recorreu da decisão, mas não chegou a obter resposta do ministério.
No site do sindicato, se dizia que Josefa era docente do 1º. Ciclo dos distritos da Guarda e Castelo Branco. Trabalhara no concelho de Almeida, onde residia, ao abrigo do regime de mobilidade por doença, o que lhe permitia ser apoiada pela família e exercer “a profissão de que tanto gostava”.
Naquele fatídico ano, acabou “colocada” em Oleiros, a 207 quilómetros de casa. Em situação de grande pressão psicológica, a conjugação dessa situação com as fragilidades de quem estava a fazer quimioterapia, obrigou-a a entrar de baixa médica, o que lhe provocou um quadro de ainda maior ansiedade, face à possibilidade de os seus alunos ficarem sem aulas.
Josefa morreu aos 51 anos de idade, de um derrame cerebral, após dias vividos em profunda tristeza.
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