Cabuçu, 7 de outubro de 2042
Recordar-vos-eis certamente, de tempos atrás, vos ter falado da crise ética que me acometeu, quando deparei com a chamada “turma de lixo”, composta de alunos que haviam reprovado por não saber ler. Compreendi que se continuasse a ensiná-los do modo como os anteriores professores tinham ensinado, eles continuariam a não aprender.
Iria sair dessa crise, resolvendo mais um dilema. Ela já não era da mesma natureza da primeira crise. Não era apenas um dilema moral – era uma questão ética! Se não encontrasse outro modo de ensinar, abandonaria a profissão de professor.
Encontrei um modo, ainda que imperfeito, e fiquei professor. Mas, uma nova crise eclodiu, quando a administração educacional praticou abuso de poder.
Um Relatório de Avaliação Externa propunha que se erigisse um novo edifício, para albergar os alunos da Ponte. Acompanhei funcionários ministeriais na visita a locais onde o prédio poderia ser implantado. Mas, o mal conspirava… “Professores”, políticos, administradores sem escrúpulos planejaram afastar a Ponte do deu território.
Intimidaram os professores da Ponte, assediaram os pais dos alunos. Três vezes convocados, em Conselho de Escola, os pais decidiram que a escola permanecesse, na margem direita do Rio Ave, no Lugar da Ponte. A administração educacional intimidou professores medrosos, que desrespeitaram a vontade de uma comunidade. Vila das Aves perdeu a sua melhor escola.
O projeto foi habitar um prédio paredes-meias com a uma “escola normal”, incomunicável. Constituíra-se numa ilha de excelência acadêmica socialmente desenraizada, na outra margem do rio.
Eu não conseguia compreender a atitude dos professores da Ponte. Cadê a coragem e a resiliência, que caracterizaram o projeto ao longo de mais de trinta anos. Haveria medo de perder um emprego?
E aí vêm mais perguntas. Se as decisões do Conselho de Escola – que eu presenciei na última das reuniões – eram soberanas, por que não foram respeitadas? Que direito assistia ao ministério de desrespeitar um contrato? Por que obedeceram os professores à imposição?
Pais leais ao projeto não permitiram que os seus filhos fossem para o outro lado do rio. Pediram-me que ficasse com os seus filhos. Mas, eu não quis contribuir para o divisionismo já existente. E essas famílias abandonaram o projeto.
Saturado de quezílias, cansado de confrontos com burocratas autoritários, busquei resposta para velhas interrogações. Ultrapassei a terceira das crises numa releitura de Freire, Papert, Lauro, Agostinho, Flexa… Os contornos de uma nova construção social de aprendizagem e de educação tomavam forma concreta.
Não mais insisti em velhos processos, em contribuir para criar projetos-exceções, que a administração quase sempre acabava por destruir. A nova construção social não seria permeável a burocráticas intromissões, porque se fundava em pressupostos legais e nas ciências da educação.
A Escola da Ponte continuava sendo uma das raras escolas em que havia “protagonismo juvenil”, onde a autonomia do aluno, efetivamente, vigorava. Porém, eu compreendera que o centro (se centro houvesse) não seria o aluno. A aprendizagem não acontecia centrada no professor – prática quase hegemónica, na época. Estaria assente na criação de vínculos, dependeria da qualidade da relação pedagógica, aconteceria em cada sujeito de aprendizagem, no contexto de uma comunidade.
No 7 de outubro de 22, exatamente 46 anos após a minha chegada à Ponte, eu reuni com secretários de educação, para tomar uma decisão ética. Em breve, disso vos falarei.
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