Quissamã, 30 de setembro de 2042
Queridos netos, resgatei do baú das velharias uma pen drive, que ainda funciona, e que contém registos da polémica de que vos falei em outra cartinha.
O ministro propunha dar autonomia aos diretores, para que pudessem selecionar um terço dos seus professores. Os sindicatos argumentavam que experiência semelhante já fora testada, referindo uma “Bolsa de Contratação de Escolas”, que consideravam ter sido “uma grande trapalhada “.
Alguma razão lhes assistia. Porém, uma estranha cegueira os afetava. Aquela de que Bauman falara, uma cegueira moral e ética daqueles que veem. Aquela a que Saramago, metaforicamente, se referia, uma cegueira social.
O nosso Nobel apelava ao dever moral dos que enxergavam:
“Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, cegos que, vendo, não vêem”.
Os professores não se sentiam profissionalmente realizados, valorizados. E a cegueira sindical impedia que se identificasse a origem do “burnout”. E eis que o amigo António partilhou das minhas preocupações:
“Bom dia, querido amigo Zé! Como vai a vida? Quanto a mim, vou andando, entre o encerar de um ano letivo e o início de outro ano letivo. Com projetos que deveriam avançar, mas que esbarram no imobilismo habitual. Ontem, estive numa reunião que o agrupamento denomina de “autoformação e partilha” (um nome interessante para referir algo que não serve para nada). Estou muito desiludido.”
Estavam cegos os sindicalistas, quando usavam a tradicional lengalenga:
“Defendemos o primado da colocação de professores pelo concurso nacional e pela sua graduação profissional. Um concurso nacional, com a lista de graduação profissional, é a maneira mais justa de colocar professores.”
Em que consistia essa “graduação profissional”? Que parâmetros e critérios encerravam? Seria mesmo a “maneira mais justa”?
Não era! O tempo de serviço em funções instrucionistas não dotava os professores de maior competência profissional. E a formação contínua nenhum conhecimento lhes acrescentava, apenas certificados de frequência de inúteis cursos.
Eu acreditava que os professores seriam capazes de transcender os erros cometidos na sua formação. O desafio era imenso e poderia parecer inacessível a comuns mortais, mas sê-lo-ia, se práticas corporativistas não se constituíssem em obstáculos. O Nunziatti dizia que “não há mudanças nos nossos modos de fazer sem uma transformação nos modos de pensar”.
A formação profissional não nos qualificara se não para a reprodução de um só (e inquestionável) modelo educacional. Chegavam às escolas professores que não sabiam por que faziam o que faziam, e que não faziam algo diferente por não terem sequer uma ideia do que seria possível ser feito. Apenas esperavam o tempo necessário para subir de escalão e na “carreira”.
Naquele tempo, eu era um dos mais antigos sindicalistas. Tinha passado por órgãos de direção e até tinha “engolido sapos”, para proteger um sindicato. Mas, para o vosso avô a paciência já não era virtude. Já não tinha idade para ser politicamente correto, ou suportar desmandos, sobretudo quando eram provenientes de organizações a que eu dedicara toda a vida.
Na tentativa de ser útil e até mesmo de “servir de ponte” entre um sindicalismo do século XXI e um ministério do século XIX, enviei cartinhas ao João, quando ele ainda estava ministro, e lhe pedi que delas desse conhecimento ao António, que estava secretário.
Havia quem dissesse que eu era “casamenteiro”. Mas eu só pretendia por “o lobo a pastar com o cordeiro”, se cordeiro e lobo houvesse e se o Homem não fosse o lobo do Homem.