Maricá, 26 de outubro de 2042
Este dia do outubro de há vinte anos era o do aniversário do meu irmão Rui. E era o dia em que se comemorava o centenário do nascimento de um brasileiro que me fez trocar Portugal pelo Brasil (ou me fez ser metade de cada lado do Atlântico).
Para celebrar essa data, vos trago três episódios exemplares, prova de que, em momentos críticos da história da Humanidade, surgem seres como Darcy, rompendo trevas de tempos sombrios.
Aristides de Sousa Mendes foi cônsul de Portugal na França. Quando as tropas de Hitler invadiram esse país, Salazar ordenou que não se concedesse visto para quem tentasse fugir do nazismo. Contrariando o ditador, Aristides salvou dez mil judeus de uma morte certa. Pagou bem caro a sua atitude humanitária, pois o ditador Salazar o destituiu do cargo e o fez viver na miséria, até ao fim da sua vida.
Diz um provérbio judeu que quem salva uma vida salva a humanidade. Em sinal de gratidão, há vinte árvores plantadas em sua memória no Memorial do Holocausto, em Jerusalém. E Aristides recebeu dos israelenses o título de “Justo entre as Nações”, o que equivale a uma canonização católica.
Quando um empregado de um frigorífico foi inspecionar a câmara frigorífica, a porta se fechou e ele ficou preso dentro dela. Bateu na porta, gritou por socorro, mas todos haviam saído para suas casas. Já estava muito debilitado pela baixa temperatura, quando a porta se abriu e o vigia o resgatou com vida.
Perguntaram ao vigia-salvador:
“Por que foi abrir a porta da câmara, se isso não fazia parte da sua rotina de trabalho?”
Ele explicou:
“Trabalho nesta empresa há 35 anos, vejo centenas de empregados que entram e saem, todos os dias. Esse é o único funcionário que me cumprimenta, ao chegar. E se despede, ao sair.
Hoje, ele me disse “bom dia”, ao chegar. E não percebi que se despedisse de mim. Imaginei que poderia lhe ter acontecido algo. Por isso, o procurei e o encontrei.”
O terceiro episódio nos diz que muitos heroicos gestos são anónimos, discretos pontos de luz em tenebrosos tempos de morte e destruição.
Uma brasileira, sobrevivente de campo de extermínio nazi, contou que, por duas vezes, esteve numa fila que a encaminhava para a câmara de gás. E que, nas duas vezes, o mesmo soldado alemão a retirou da fila.
Finalmente, um excerto de uma homenagem fúnebre escrita por uma criança, que me fez invocar o falecimento da Dona Mina, uma extraordinária mulher, mãe da Fátima, cuja vida se extinguiu na mesma semana dos aniversários que nesta cartinha celebro.
“Um dos grandes presentes que a vida nos deu foi o tempo passado ao seu lado. Seu coração e sua casa sempre foram um grande albergue. Obrigado por ter estado presente em nossas vidas.”
No início dos anos sessenta, Milton Santos teorizava uma globalização humanizada. Florestan Fernandes aprofundava o conhecimento de processos de mudança social, propunha reformas de base. A Nise da Silveira do da Casa das Palmeiras tornava-se membro fundadora da Société Internacionale de Psychopathologie de Léxpression. Paulo Freire elaborava as bases de uma pedagogia crítica. Os “Vocacionais” da Maria Nilde atingiam um nível de qualidade como jamais se vira no Brasil. Anísio Teixeira e Agostinho da Silva planejavam a Universidade de Brasília. E a síntese desse movimento, a máxima expressão dessa ínclita geração dava pelo nome de Darcy Ribeiro.
No outubro de vinte e dois, estávamos saindo de tempos de crise. Para obstar ao regresso de tempos sombrios, mais do que celebrar Darcy em palestras e teses acadêmicas, seria preciso atualizar as propostas desses mestres. Isto é: praticar Darcy.
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