Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MXXXVII)

Mumbuca, 27 de outubro de 2042

Vai para quarenta anos, escrevi uma carta para Darcy. Além túmulo, claro, embora o sentisse bem vivo e celebrado. Recordo-me de a ter escrito no bar do Beijôdromo, à conversa com o Chiquinho, livreiro da Universidade de Brasilia com quem Darcy muito conversou. Fofoca vai, fofoca vem, atrevi-me a dirigir-me ao Mestre nestes termos:

“Querido Darcy, escutei o teu apelo, já quando o câncer consumia o teu último sopro de vida. Vi-te sofrer o exílio, enquanto o teu país dormia distraído, sem perceber que era subtraído em tenebrosas transações. Vão sacrifício o teu, porque as escolas continuam a não ensinar.

A lei, que fizeste aprovar nos idos de noventa, continua sendo letra morta. Imagina que os autores de uma anunciada reforma creem que o sistema irá melhorar com “boletins e reprovações”, ou quando, “pelo menos um período por dia seja dedicado ao desenvolvimento de atividades interdisciplinares”.

Leste bem, Darcy: um período por dia! Ou “quando houver espaço para que professores trabalhem por projetos em algumas disciplinas”. Em algumas disciplinas! Ou, ainda, quando “no último ciclo, os alunos sejam protagonistas do próprio aprendizado” – para esse povo, somente no último ciclo acontecerá “emancipação social e cidadã dos alunos” (sic).

É lamentável que continues ostracizado, que um obsoleto sistema de ensinagem continue a semear ignorância e que milhões de jovens sejam excluídos de uma vida digna, por via de desastrosas políticas públicas.

É triste, caro Darcy, verificar que aqueles que detêm o poder de mudar não entendam que, junto com Anísio, Freire e Lauro, tu formas “o quarteto mais fecundo, fértil e injustiçado da história da educação em nosso país”.

Os nossos governantes lamentam que apenas 34% dos alunos apresentem conhecimento adequado ou avançado em português e 27% em matemática; ou que, na 8ª série, 23% estejam com nível adequado e avançado em português e 10% apresentem esse resultado em matemática. Mas, cometem o despudor de ressuscitar medidas que, no passado, deram origem a esse descalabro.

São medidas de retrocesso, que perenizam o velho paradigma escolar, reprodutor de oprimidos e opressores, que o malogrado secretário de educação Paulo Freire tanto denunciou. Medidas de manutenção do desperdício de dinheiro e de gente, que servirão para perpetuar o analfabetismo, numa escola que já produziu muitos milhões de analfabetos.

Ficamos sem saber se os nossos reformadores agem por ignorância ou loucura. São ignorantes aqueles que desprezam a produção científica, que ignoram a existência de práxis coerentes com a tua Lei de Bases, quem toma decisões desprovidas de bom senso.

Essas e outras inúteis “medidas” são apregoadas na comunicação social, com pompa e circunstância, despudoradamente, como de algo sério se tratasse. Eu sei que custa a crer, caro Darcy, mas é verdade. Se não me engano, foste tu quem fez esta afirmação:

“O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.”

Não desesperes. Fica sabendo que já muitos educadores e escolas são sensíveis aos teus apelos. Depois de tenebrosos tempos, luminosos tempos hão-de vir.

Sei que te confessas ateu. Mas, se alguma influência tiveres junto de Deus, pede-Lhe que perdoe os nossos governantes, porque eles não sabem o que fazem.”

No seu lugar etéreo, o Mestre intercedeu pela remissão de pecados e pecadilhos educacionais. E, no final do outubro de há vinte anos (finalmente!), Darcy começou a ser praticado.

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