Maricá, 1 de janeiro de 2043
Netos queridos,
Eis-nos chegados ao ano da graça de 2043! Como sempre faço, no início de cada ano, tentei (sem sucesso) libertar-me de velharias acumuladas. No fundo do baú das velharias, achei o cartão que encima esta cartinha.
O Mauro e a Valéria eram (e são) dois amigos, que dedicaram toda uma vida à causa das crianças. Tal como o amigo Matias, autor de um textinho em que citava outro bom amigo, o Miguel, que, num dos livros que eu levaria para uma ilha deserta (“No coração da escola”), dizia ser a escola uma instituição em que apenas se pergunta às pessoas: “o que sabes?” E muito poucas vezes: “o que sente?”
O vosso avô viajava, não tinha eira nem beira material, mas tinha muitos amigos, uma vida feita de amigos. Como o Rui Canário, que, no seu livro ” O que é a escola”, defendia que o problema dos professores e o problema dos alunos era o mesmo problema, convidando a uma relação de aliança e não de confronto.
“Pode ser o início de uma metamorfose nos modos de pensar e de agir na profissão? Pode ser o início de uma política de emancipação e libertação? O que sentes, tu, professor, quando ninguém se importa com as tuas dúvidas, com as tuas dores físicas ou sentimentais, quando tens de dizer bom dia vamos então lá a lição número 55, o sumário é os sistemas lineares em ambientes caóticos, e quase ninguém escreve, quase ninguém liga, fala para o lado e para trás e a tua alma sangra e no teu peito bate um coração aflito, quase desesperado e exangue, quando tens de mesmo quando te apetece chorar, quando tens de encarcerar todos os teus sentimentos e apenas te permites que seja a máquina pensante, a máquina que ensina, a máquina.
O que sentes, tu, aluno, quando o professor faz o ditado da matéria e tu nada entendes, quando és humilhado de mil e uma formas, quando tens uma nota que não corresponde aos teus saberes, quando a tua princesa encantada voou dos teus olhos e foi morar para longe de ti, ou quando o amor lateja intensamente e tem de ficar preso numa impossibilidade, quando o professor tem de dar o programa todo e tu te ficas apenas pela metade.
Em nome dos exames, do acesso ao ensino superior, da meritocracia, da justiça e da igualdade de oportunidades, da igualdade de frequência, da igualdade de sucesso. E da inclusão.
Triste é este mundo dos sistemas, triste é esta máquina do sistema, triste é esta vida desumana, triste é esta separação, esta alienação. Esta desesperança. Resta-nos pensar, agitar, acordar. Agir e interagir para construirmos outros pequenos mundos. Habitáveis. Humanos.
Precisamos de construir uma “arca de aliança” entre professores e alunos. Entre
professores, alunos e pais. Uma aliança inscrita no território onde os professores
podem ter uma voz poderosa e reconhecida. Porque é aí que o reconhecimento e autoridade pode ser retomados. E onde uma nova “política” pode emergir. Procurar para sair do labirinto onde todos nos perdemos.”
No primeiro de janeiro de há vinte anos, enviei aos meus amigos votos de feliz ano novo. Em particular, àqueles que, no WhatsApp da UNIPROSA e da “Cátedra Grupo Acadêmico,” pugnavam por uma “nova política”. Com eles e esperançosamente, aguardava as iniciativas de uma “nova política” do governo que, nesse dia, passaria a dirigir os destinos do país.
Mais uma vez, lhes perguntei:
“Vamos conversar?”
E lhes pedi que, após tempos sombrios, agissem no sentido da criação da “arca de aliança” entre professores e alunos”, que o amigo Rui Canário propunha.
Esperava que, desta vez, não ignorassem o meu convite. Afinal, as passagens de ano seriam, ou não seriam, oportunidades de regeneração?
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