Jardim de Aruanda, 30 de dezembro de 2042
Já perto do final de vinte e dois, a Internet me fez recordar algo, que eu tentara esquecer. No final da década de sessenta, num debate em torno da proposta de Reforma Veiga Simão, escutei de um professor universitário este misto de ignorância e arrogância:
“Vossa Excelência pode contar com a ajuda da nossa faculdade. O Senhor Ministro pode ficar tranquilo. Sabemos como ajudar os professores primários a melhorar as suas aulas”.
Mais ou menos isso, se a memória não me falha. O ranço instrucionista “baixava” às salas de aula instrucionistas. A ignorância do universitário não tinha limite. Essa criatura desconhecia, por exemplo, a existência de grupos de estudo, que, já nessa altura, em plena ditadura, desenvolviam práticas que o universitário nem imaginava que existissem. Mas, ele era um doutor. E, para o ministro, o interlocutor credível era a universidade.
Naquele tempo, não se falava de inovação, nem de outros termos que, nos idos de vinte, enfeitavam o discurso. Nem o jargão “científico”, com o qual “especialistas” ocultavam ignorâncias. Mas, a velha e rançosa arrogância se revelou, meio século depois da Reforma Veiga Simão. Li num órgão de comunicação social este disparate:
“Universidade ajuda o Ensino Básico”. Com o subtítulo: “Parceria entre universidades e escolas é caminho para salto de qualidade na educação”. A autoria do disparate era atribuída a uma coisa chamada “Notas & Informações”.
Mais uma vez, a universidade se disponibilizava para “ajudar”.
A minha reação à leitura do disparate foi um impropério que aqui não citarei. E uma profunda náusea.
Eu temia que a nova velha “parceria” acontecesse. O “salto de qualidade” só poderia ser um salto para trás, quiçá para mais uma queda no abismo da hecatombe escolar.
No início dos anos noventa, o vosso avô foi convocado para uma reunião com o diretor de turma do vosso pai. O André frequentava o Ensino Secundário, numa turma considerada “difícil”. Por pudor e por consideração aos verdadeiros professores, não contarei o que aconteceu na reunião com aquele professáurio diretor de turma. Vos direi apenas que humilhou os pais dos alunos.
Passada uma semana, calhou de eu abrir um curso de formação de professores do Ensino Secundário. E, entre os vinte e cinco formados, lá estava o professáurio. Estrábico, o observei, sem que ele se apercebesse de que o estava observando. Olhava para mim com ar de quem pensa: “de onde conheço esta pessoa?”
No intervalo, veio ao meu encontro. Preguntou:
“Em que faculdade o Senhor Doutor dá aula?”
Respondi:
“Eu não dou aula. Nem trabalho na universidade.”
“Eu acho que conheço o Senhor Doutor. Está na pesquisa? Pergunto isso, porque faço muita pesquisa.”
“Não sou doutor, nem quero ser. Sou mestre em ciências da educação. Faço pesquisa, mas não é daí que o colega me conhece.”
“Colega? Mas eu só sou licenciado. O Senhor Doutor subiu na carreira.”
“Considero que não subi nem desci na carreira. Trabalho numa escola básica.”
“Eu trabalho na Secundária.”
“É mesmo daí que você me conhece. De uma reunião de pais que o colega conduziu, há uma semana.”
O professáurio mudou de cor. Engasgou-se na fala. Pediu desculpa e se foi.
No dia seguinte, uma funcionária da Ponte perguntou se eu estava a dar um curso. Respondi afirmativamente.
“É que o meu sobrinho é seu aluno. E está preocupado.”
“Porquê?” – perguntei.
“Porque me disse que tem medo de que o Professor Zé o reprove no curso. Ele precisa do diploma.”
Uma universidade reprodutora de mentalidades tacanhas, como a desse professáurio, poderia “ajudar o Ensino Básico”?
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