Bosque de Itapeba, 9 de fevereiro de 2043
Muitas foram as vezes em que, nas reuniões de fim de tarde, companheiras de projeto chegavam chorando copiosamente. Perguntava-lhes o motivo do pranto. Era sempre o mesmo, a maldade caindo sobre a nossa escola.
Chorando, a Maria desabafou:
“Zé, hoje, a mãe da Antónia veio perguntar-me se tu eras pedófilo. É o que andam para aí a dizer. E até já apareceram panfletos na rua dizendo isso. É insuportável. Eu já não me sinto com forças para continuar. É melhor ficarmos por aqui. Os professores das outras escolas – sabemos que são eles os autores dos boatos – não nos vão deixar em paz. Eu desisto.”
“Então, amanhã, terei de procurar alguém para ocupar o teu lugar na equipe?”
“Zé, tu és teimoso. Para com isso! Vais continuar assim, neste desgaste contínuo? O meu marido até já disse que assim não dá. Tu vais mesmo continuar?”
“Vou.”
Entre a escola e a casa, eu chorava por dentro. Quando chegava a casa, fechava-me no escritório, colocava o vinil a tocar o segundo andamento da Sétima de Beethoven. Depois, mudava de roupa, que aquela que vestia estava encharcada de lágrimas. No dia seguinte, tudo recomeçava. A minha resiliência se juntava à resiliência da equipe, e recomeçávamos mais fortes do que antes.
Por via de um boato, eu quase fui assassinado. Escapei por “milagre”, mas aquilo que mais abalou o projeto não foram os ataques sofridos vindos do exterior. O projeto “tremeu” quando a maldade provinha de dentro. Ao longo de três décadas, a Ponte resistiu às investidas de “invasores”.
Houve quem “invadisse” a Ponte com propósitos mesquinhos. E, quando os invasores primavam pela inteligência, discretamente, conseguiam degradar um delicado sistema de relações. Ao longo de mais de cinquenta anos, sofremos pequenas e grandes traições de desafetos e a deslealdade provinda de dentro.
Os professores – como todos os seres humanos – são uma mistura de belo e de horrível. Um dos invasores manipulava a realidade do modo que lhe convinha. Apenas sensível aos seus argumentos, explorava a fragilidade dos professores mais novos, tentando destruir a minha reputação e o projeto.
Ninguém é insubstituível, mas eu era o alvo. Os detratores sabiam que se eliminassem a coordenação, provavelmente, o projeto sucumbiria. E, entre terrorismo verbal e tentativas de assassinato de caráter, a maldade desabou sobre o frágil ser humano que eu sou. Mas, sobrevivi. Meio século de dolorosa aprendizagem me permitiu encontrar antídoto para as investidas dos invasores.
Queridos netos, quando visitou a escola, o professor Lemos Pires disse-me que a Ponte só acabaria, se os seus professores acabassem com ela, por dentro. Os “invasores” causaram danos irreversíveis. Porque é fácil começar projetos. Difícil é mantê-los, sem que se degradem. Um projeto humano é um ato coletivo, feito de pessoas em contínua aprendizagem. E da humana natureza complicar o que é simples. Subitamente, sem explicação, os “invasores” ligavam os seus “complicadores” e tudo se complicava.
No fevereiro de 23, consciente dos riscos que o primeiro projeto de comunidades de aprendizagem corria, ao primeiro sinal de “invasão”, achei por bem “avisar” que não suportaria deslealdade. Fui mal interpretado, mas suportei o mal-entendido.
Precisei de curar feridas e ajudar a reconstruir projetos, porque deveremos ser compassivos, cuidar do que se trabalha e trabalhar o que se cuida. O cuidar dos outros, ajudando-os a refazer-se, pressupõe uma responsabilidade voluntária e um dom que os invasores não possuíam – a palavra ética na boca dos invasores era blasfêmia.
Por: José Pacheco
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