Cabo Frio, 22 de março de 2043
Queridos neto, sabeis que, há cerca de setenta anos, me emancipei do lecionar solitário em sala de aula e me fiz solidário. Também vos recordares de vos ter dito que, quando tentei ser solidário na universidade, deparei com uma cultura feita de solidão de… sala de aula.
Professores universitários diziam ser escolanovistas, construtivistas, até pós-construtivistas, mas praticavam o instrucionismo mais primitivo que se possa imaginar. Alguns havia que enfeitavam o discurso com as falas do Freinet, promoviam encontros, apoiavam (teoricamente) professores militantes, mas a sua prática era a solitária docência.
Fiquei decepcionado com aquilo a que assisti nas instituições por onde passei, e recusei todos os convites para ser professor do ensino “superior”. Isso me causou um enorme prejuízo pecuniário pois, exercendo a profissão no ensino “inferior”, mesmo sendo mestre, auferia o salário de um bacharel ou licenciado. Mas, essa opção me isentou de renegar princípios.
Mais tarde, já aposentado, fiz amizade com universitários, que eu admirava. Mas, algo impedia que essa amizade fosse fecunda. Quando eu os convidava para debater transição paradigmática, mudança, inovação, fechavam-se numa concha feita de arrogância e elogios mútuos, ou manifestavam incômodo.
Um desses professores, que tinha dedicado ao vosso avô a sua tese de doutoramento, verbalizou esse sentimento, no decurso de uma conversa virtual:
“Zé, não dediquei a minha tese aos meus pais, dediquei-a a ti. Mas, agora, tu és um incômodo para mim.”
Eu virara um incômodo. Tinha cometido um pesado pedagógico, tinha posto em prática aquilo que os acadêmicos apenas punham nos seus livros.
Há uns vinte anos, numa rede social, houve quem reagisse a uma das perguntas que eu repetia, por não receber resposta: “Por que existe sala de aula?”
Esperaria dos acadêmicos uma resposta fundamentada, mas a reação foi jocosa e com laivos de soberba. Valeu, nessa ocasião, a intervenção do Mestre Pedro e um comentário, que achei no fundo do baú das velharias e que vos dou a ler.
“Observo que vários doutores com quem convivi defendem novos, novíssimos paradigmas em suas áreas, mas permanecem apegados às velhas fórmulas de antanho, não só na hora de ensinar, mas principalmente na hora de viver, que é a maior amostra das nossas convicções, das nossas crenças vitais.
Suas aulas de vida são arcaicas. Andam pela vida como quem acompanha enterro, cantando ladainhas repetidas. Jeito de viver e de ensinar viram quase uma coisa só, uma massa amorfa, sem gosto, brilho, boniteza… Só obrigação, só prazos cumpridos, quase só o esperado. Pouca ou nenhuma transgressão, mesmo quando o que pregam em suas teses e artigos são transgressões e cheiram a vanguarda.”
Eu não quis ser tão radical, cruel, como o autor dessas justas palavras. E, quando me foi dado elaborar um prefácio de um livro, que celebrava mestres universitários que ainda “davam aula”, aceitei o desafio. Fi-lo com um sentimento misto: de compaixão e gratidão.
Me considerei um privilegiado por me ter sido dar a ler depoimentos de mestres da arte de “dar aula”. Eram exercícios de uma escrita sensível, reflexos de uma tomada de consciência do destino da escola e da necessidade de humanização do ato de ensinar.
Falavam-nos do ofício de professor universitário e das marcas que esse exercício imprimiu nas vidas destes professores e nas dos seus alunos. Sobretudo, demonstravam uma verdade nem sempre evidente: havia professores que não usavam a pedagogia como mera ciência, mas como a arte de ensinar a viver.
Por: José Pacheco
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