Vila Real de Santo António, 29 de abril de 2043
Às portas de fazer setenta e dois, entre o “25 de Abril” e o “Primeiro de Maio” de há vinte anos, a busca por uma saída de velhas e novas “crises” estava imersa num redemoinho de ideias. Em vão, tentava encontrar solução para dilemas sem fim. E a Maria, também. De modo que lhe enviei a última das cartinhas de um livro chamado “Para Alice Com Amor”. Devereis estar lembrados. Era assim:
Algures, em 15 de setembro de 2007,
Querida Alice,
Esta é a última das cartas, que não o fim da história. Este é o dia da tua primeira ida à escola, o início de uma outra história. E ambas terão os desfechos que lhes quiseres dar. A vida é uma história sempre inacabada a que podemos conferir diferentes desenlaces. Basta que não nos confinemos aos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres deste nosso tempo da proto-história dos homens.
Quando, depois de extintos os ecos do tempo da história, os homens acederem à era do espírito, hão-de entender a fragilidade dos paradigmas que sustentavam as suas ciências. Hão-de reconhecer como aparentes as suas imutáveis realidades. Hão-de reconhecer a falsa moral das suas histórias, se comparada com a doce amoralidade dos pássaros. Quero que saibas que, quando os homens criam ser o seu mundo plano e limitar-se aos mediterrânicos limites, já os pássaros sabiam ter o planeta forma arredondada, por o terem sobrevoado de lés a lés. No tempo em que os homens criam ser o centro do mundo e viam abismos e monstros na linha do horizonte, os pássaros redefiniam zénites e provavam que o espaço é ilimitado como a música e os sonhos. Onde, antigamente, os homens idealizaram um céu de vida eterna para os seus eleitos, havia pássaros. No lugar onde imaginaram situar-se o trono dos seus deuses, não havia uma “pomba estúpida” à medida dos seus medos, mas o espírito dos pássaros. Quando os desvendadores dos segredos dos mares atingiram novos mundos, encontraram pássaros. Quando os homens voaram até à Lua e dela contemplaram o planeta azul, compreenderam que o azul que os separava do imenso e negro espaço não tinha segredos para os pássaros que, há séculos, o habitavam. E, quando os astrónomos, espreitaram através de potentes telescópios, penetrando distantes galáxias e confirmando a antiga predição de que o que está por baixo é igual ao que está no alto, viram pássaros invisíveis pousados no asteroide B 612.
Quando o tempo foge enquanto a eternidade avança, é comum suceder um inusitado retorno à infância, sentir-se uma estranha nostalgia de não sei quê. Creio que também irei ter saudades quando chegar a minha vez de regressar ao lugar de onde terei vindo.
Deixo estórias por completar, porque tudo o que é predito é da natureza das coisas inertes. Sei que saberás reinventar as histórias que eu te deixar. Se, com o aprender a ler, desvendares mistérios e ousares pôr asas na imaginação, inevitavelmente, te confrontarás com a perfídia e a ignorância do teu tempo. A mesma perfídia e a mesma ignorância com que as gaivotas da escola das aves se confrontaram, no tempo em que nasceste.
Mas, não deixes de acreditar. Ainda que te acusem de loucura, te apelidem de utópica, não te quedes na amargura de ninhos desfeitos, nem esperes a compreensão dos homens. Busca a sabedoria dos pássaros. Deixa fluir a torrente dos dias invulgares, porque vêm de muito dentro de ti.”
No livrinho da Alice, nos projetávamos num futuro auspicioso. Recuperei essa cartinha, por nela reencontrar o espírito que me animava em meados de setenta, quando, num mundo às avessas, a beleza e o amor eram as coisas pelas quais valia a pena viver.
Por: José Pacheco
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