Sintra, no “Primeiro de Maio” de 2043
Estávamos na Lisboa dos idos de vinte e três. Viagem para o Norte. Encontros, reencontros, desencontros… despedidas. Era a última viagem de trabalho a Portugal. Definitivamente! Encontrara alguém, que me fizera “mudar de vida”. A expressão é corriqueira, dificilmente traduz o sentir, mas não encontro outra. Apenas me recordo de um momento afim. Foi nos idos de sessenta.
Angélica nem precisaria de tal nome, para sabermos que o era. Juro que não inventei o nome, apesar de humanos mais cépticos poderem pensar que minto. São lugares de verdade, são seres verdadeiros aqueles de que vos venho narrando feitos e peripécias.
Sabeis bem que os seres e os nomes são o que nós quisermos que sejam. Sabeis que não é por acaso que haverá acasos e que as coisas se vão entrelaçando e tomando forma, fazendo sentido. Quero acreditar que acrediteis que ser angélica, no presente caso, não é ficção. Ela existiu. E foi como um anjo da guarda das iluminuras.
A provecta idade da gaivota Angélica há muito a afastara do ensinar aprendendo, já não lhe consentia a concretude pedagógica de outros tempos. Mas a todos nós acolhia numa espécie de tálamo de experiência e bondade. Até ao fim dos seus dias, Angélica nos contagiou com o seu solidário saber experiencial, apaziguando angústias, conferindo-nos alento para defrontar obstáculos.
Foi a primeira das freinetianas que conheci. Me levou a procurar junto de amigos exilados na França as obras do Celestin. Alguém que, generosamente”, me empurrou para uma vida de militância, que dificilmente eu abandonaria.
Obstinado (e até pretencioso), numa vida de andarilho, tudo sacrificava em função de uma “missão” – que me perdoeis, netos queridos, os raros e breves encontros que convosco me foi permitido viver, o sacrifício de um amor imenso entre avô e netos no altar de um amor universal.
Nos anos que se seguiram ao maio de vinte e três, erros meus seriam redimidos com a ajuda de Alguém de que vos falarei mais adiante, um “raio de luz na minha vida”, como cantaria a Teresa dos Madredeus. Ao final de meio século de cuidar de outros, o vosso avô se dignou cuidar. Mas, vamos ao que interessa…
Não foi fácil rasgar o cordão umbilical com a vida que levara, mas consegui. O meu amigo António me ajudou. E eu ajudei o meu amigo António.
No início do século, o António havia visitado a Ponte. Vinte anos depois, escrevera um livro de memórias e propostas, que dava pelo título de “Recriar a Escola Pública, Refundar o Sistema Educativo”. Título austero e ambicioso, mas intenções que acabariam por se concretizar.
Aceleradas mudanças sociais, a inovação tecnológica, a pesquisa no campo das neurociências e no da inteligência artificial, a convergência entre teoria da complexidade e a produção científica radicada no paradigma da comunicação, exigiam que se reconhecesse a necessidade de operar novas e profundas rupturas.
Era já longa a saga vivida por professores, que ousaram mudar as suas práticas. De cada vez que surgia algo novo no reino da educação, hábil, astuto, o “sistema” assimilava todo e qualquer vestígio de ato inovador, “domesticando” o seu autor, transformando a nobre intenção em paliativo de um velho e obsoleto modelo educacional.
Mas já havia professores dispostos a criar “turmas-piloto” e a, responsavelmente, ensaiar novos modos de ensinar e de aprender. Havia escolas disponíveis para recriar espaços de aprendizagem físicos e virtuais, onde não se planejasse a vida de outros, mas se ensinasse seres humanos de todas as idades a planejar as suas vidas.
Chegara o tempo de mudar de vida.
Por: José Pacheco
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