Amendoeira, 27 de junho de 2043
No início deste século, se vaticinava o fim da espécie, daqui a cerca de cinquenta anos. Não creio que tal aconteça. Mas, à cautela, fomos fazendo a nossa parte, no reino da educação, contribuindo para criar uma construção social de aprendizagem, que substituísse a velha construção parida na Prússia militar do século XVIII e que, por pouco (felizmente!), não cumpriu o seu fatal destino.
Durante meio século, fazendo a minha parte, atravessei o oceano, vezes sem conta. Recordo-me de, no final do périplo de vinte e três, me terem perguntado se eu iria mesmo parar de viajar. Respondi que iria tentar reduzir ao mínimo possível a minha andarilhagem.
Por finais de junho, partira de Milfontes para o Freixo, na companhia da Tânia e da Ariane, uma aliança luso-brasileira, que, nos anos seguintes, protegeriam o Pedro, a Inês e o Valentim das agruras das salas de aula. Para trás ficavam mais de meia centena de lugares e uma nova geração de projetos. Hoje, revi um vídeo desse tempo. Nele, um amigo me interpelava.
“Então, ficará por cá?”
“Também ficarei por cá. Em setembro, voltarei Portugal. Mas, continuarei a viver no Brasil.”
“E o que fará, quando voltar à pátria?”
“Trarei notícias da mátria Brasil, da terra que adotou o Mestre Agostinho e onde ele criou a primeira comunidade de que há memória.”
“E o que fará, entretanto? Continuará a acompanhar o projeto das comunidades?”
“Certamente. Mesmo longe, estarei por perto. “
“E o que fará, tão longe desta terra e dos projetos que por cá deixou?”
“É certo e sabido que a Internet tem contribuído para aumentar a solidão das pessoas e para desumanizar, ainda mais, a educação que cá se faz. Mas a Internet também pode ser um instrumento de humanização, bem usado pela A.R.C.A.”
Netos queridos, em outra cartinha vos direi o que foi a ARCA. Por agora, vos direi que, durante essas viagens, ajudei muitas famílias a reivindicar uma nova educação para os seus filhos. A sociedade despertava para uma realidade até então oculta sob um manto diáfano de fantasia. Sonhos viravam realidade acreditávamos ter “chegado a hora”. Apressei-me a enviar a uma Alma Gentil a boa notícia recebida do Adrian e da Raquel:
“Conseguimos abrir turma piloto com a Professora Rute! A Rute está entusiasmada e a diretora está contente por avançarmos.
Obrigado por tudo o que fez por nós e por nos guiar, nestas últimas semanas. Fez-nos não desistir e continuar a lutar. Em menos de um mês, estivemos juntos pela primeira vez e tudo mudou na nossa vida. Conseguimos juntar uma comunidade de pais interessados e uma professora viva, em apenas três dias. Agora, temos uma Professora viva e uma diretora alinhada.
Soubemos que já esteve nessa escola, há uns anos, e que até existe um livro sobre uma entrevista que fez lá.
Um muito obrigado nosso! Um forte abraço!”
Nesse mesmo dia, já perto do fim da viagem a Portugal, a Cristina e a Caetana encontravam, em São Cristóvão, mais um professor vivo. Para lá fomos, no dia seguinte. No Portugal de 2023 se concretizava a “profecia”, que Agostinho deixara no Brasil de 1964:
“Nas chamas se consumirão hierarquias e autocratas; o que esperamos que surja é o lugar de educação e de vida para adultos e para crianças, em que o criar vá muito além do saber e lhe seja este puro servo, em que a liberdade crie sua própria disciplina; que das máquinas de fabricar adultos nem as ruínas sobrem; que a criança cresça harmoniosamente e livremente, sem as deformações que lhe infligimos, na vida que lhe fabricámos; que seja perfeita, na perfeição de suas conscientes intenções, não na perfeição do modelo que lhe demos”.
Por: José Pacheco
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