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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCL)

Liteiros, 30 de maio de 2043

Volto a falar-vos de alguém cuja obra, ainda hoje, é preciso dar a conhecer. Mesmo se tratando de uma educadora brasileira, a sua obra influenciou movimentos de mudança ocorridos no Portugal dos idos de vinte, no tempo em que o Zé Branco e a Roberta se uniram a outros pais, para fundar círculos de aprendizagem, humanizando espaços devolutos de antigas escolas. 

Nesses protótipos de comunidade, mais do que uma revolução tecnológica, a Web 5.0 prefigurava uma revolução social e cultural. Do consumo de conteúdo se passava à fruição e produção crítica de informação, não substituindo os espaços dos afetos e gerando embriões de uma democracia digital solidária. Pressenti o espírito da Maria pairando por lá…

Quem se recordará de Maria Nilde e das suas percursoras classes experimentais, sementes dos ginásios vocacionais? Em boa hora o Luciano se apercebeu do valor desse projeto e a convidou para participar da comissão de educadores, que, nos idos de sessenta, concebeu um projeto de comunidade. E Nilde coordenou o último assomo de renovação pedagógica, antes da chegada de tempos sombrios. 

Lauro afirmou que o Vocacional foi a experiência mais significativa na educação pública brasileira, até à década de 1970. Em São Paulo, Americana e Batatais, a integração curricular, a pesquisa e os projetos de intervenção na comunidade eram o dia a dia dos seus ginásios. 

A arte, as práticas agrícolas, o trabalho em grupo-equipe, os estudos sociais, eram parte de um currículo integrado de escola comunitária, bem como a prática da autoavaliação e a substituição das notas por conceitos, que geraram a rejeição de múmias acadêmicas. 

Em São Paulo, o seu curso noturno criou oportunidades para jovens trabalhadores do bairro, a quem a escola tradicional havia negado conhecimento. Na base da construção do currículo, estava a realidade social, escolas à medida das características culturais e socioeconômicas da localidade, a parceria com outras instituições, partilhando responsabilidade social. 

Uma proposta assim estava condenada às pressões do governo e à repressão do regime militar. Nem uma década durou. Resistiu à crise de sessenta e cinco, quando Nilde negou a matrícula “ao jeitinho brasileiro” de um filho de funcionário de confiança do secretário de educação. Demitida, a mobilização de professores, funcionários e pais de alunos, em assembleias na capital e no interior, forçaram o governo a reconduzi-la no cargo de coordenadora. Porém, o AI-5 impôs limitações, que ela contrariou, por ser herdeira do legado do seu mestre e amigo Florestan. A consequência foi a invasão policial e militar de todos os ginásios vocacionais, a sua prisão e a dos seus companheiros.

Na década de setenta, Nilde implantou um programa para mulheres de baixa renda nas favelas de São Paulo. Essa e outras iniciativas a dotaram de uma extraordinária formação experiencial, que desembocou numa extraordinária tese de doutorado, merecedora de atenção no século XXI, que já não viu nascer.

A ditadura impôs-lhe a aposentadoria, crente de que a impediriam de agir. Juntamente com alguns companheiros, também perseguidos pelo regime militar, fundou uma assessoria de planejamento de ação comunitária e educacional, interveniente na defesa dos direitos humanos e dos perseguidos políticos do regime militar. Voltou à prisão. 

Com o passar do tempo, os jardins e os espaços de livre aprendizagem dos extintos ginásios vocacionais foram substituídos por muros e estacionamentos de carros, as janelas foram ornadas de grades e fechadas com cadeados.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXLIX)

Riachos, 29 de maio de 2043 

Florestan foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros. De origem humilde, viveu as consequências do flagelo da desigualdade social. Dedicou a sua obra e sua vida a defender a redução da desigualdade e a democratização da Escola.

Como deputado federal, participou da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases brasileira, na busca por uma Escola que integrasse a dispersão cartesiana e assumisse a dignidade da autonomia.

Malgrado os avanços que a lei de bases consentiu, a escola brasileira continuou imersa em contradições, dividida entre uma escola dos deserdados e uma escola de pseudo-elites, uma escola onde imperava a violência simbólica e até a violência explícita. 

Um governador de estado inaugurou “uma escola construída no Padrão Século XXI, que custou quase três milhões” (sic). Pouco tempo após a pompa e circunstância da inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro da “escola modelo”. Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida e ficou ferido. 

A diretora disse que “o rapaz tinha comportamento normal e boas notas.” 

O porteiro do colégio prestou depoimento: 

“A Polícia Militar vem, ajuda, mas quando eles saem os marginais voltam.”

Acrescentou que o colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde os alunos estudavam. Que um serralheiro colocaria as placas em volta da escola.

Mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”, disse. E tranquilizou os intranquilos: 

“A Polícia Militar ficará na porta da escola, entre os próximos quinze e trinta dias, até que o projeto de segurança seja implantado.” 

Um superintendente da secretaria de Educação “averiguou as condições da infraestrutura de segurança” e, peremptoriamente, afirmou:

“Um circuito de câmeras de monitoramento será instalado ao redor de toda a escola.”

A Polícia Militar, por sua vez, informou que faria rondas intermediárias nas escolas. Porém, apesar de todas as garantias dadas por quem pode dá-las, poucos alunos apareceram na instituição na manhã seguinte. 

A mãe de um aluno decidiu mesmo tirar o filho daquela escola, porque “se cansou de ouvir os relatos do menino, que afirmou ter testemunhado o uso de drogas no local.”

Segundo a Secretaria de Educação, algumas escolas estaduais iriam passar a ser administradas pela Polícia Militar. O governo enveredaria por um “plano de recuperação da qualidade da escola”, através da colocação de policiais militares formados em pedagogia. Anos mais tarde, uma vaga de ataques a escolas se saldou pela morte se muitos professores e crianças. 

Quanta ignorância a de pensar que se poderia acabar com a violência explícita com recurso ao autoritarismo e à violência simbólica, numa escola-caserna! Um ambiente castrense nunca poderia gerar autonomia e disciplina.

A experiência das escolas cívico-militares teve o mesmo destino de outras absurdas iniciativas de política educacional, foi jogada no balde do lixo da história. Até à década de trinta, o sistema permaneceria tão corrupto, hierárquico e autoritário como no tempo de Florestan, sempre exposto a tenebrosas tentações.

Nas suas “visitas” ao DOPS, Florestan sentiu o abandono a que foi votado pela maioria dos seus colegas. Apenas contou com a ajuda do Fernando, que, embora fosse bem relacionado com os generais, não conseguiu evitar que Florestan fosse cassado pelo regime militar e feito prisioneiro. 

Por que se calavam os educadores desse tempo perante abusos? Por que se omitiam perante aberrações? Por que lamentavam a situação, se eram parte do problema?

 

Por: José Pacheco

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