Itacoatiara, 17 de julho de 2043
No fundo mais fundo do baú das velharias, eis que encontro a cópia amarelecida de uma mensagem que, há muito tempo, procurava:
“Prof José, espero que esteja bem, porque aqui vai tudo a correr mal, infelizmente as coisas não estão a funcionar, nem pela via pública nem pela privada.
Não sei como o professor aguenta tantos anos desta luta. Eu estou já desgastada. Os obstáculos conseguem derrubar-nos, uma e outra vez. Enfim, cá continuarei no meu ativismo, mas sinto-me sem recursos.
Um abraço e obrigada por tudo.”
Se, como dizia Freire, a educação era um ato de amor, recordo-me de, amorosamente, ter respondido. Convidei a Tânia para conversa. Pedi-lhe que não desistisse. Mas, Não poderia ignorar os obstáculos e de a ajudar a ultrapassá-los.
Não aconselhei, porque isso é coisa de velho. Disse-lhe que os obstáculos seriam ultrapassados, se apelasse ao bom senso e evocasse a lei e uma ciência prudente.
Recomendei à Tânia e a todos os queixosos pais e mães que efetuassem a matrícula dos seus filhos na escola-prédio mais próxima. Que lessem o seu projeto educativo e pedissem que lhes fosse explicado o modo como o projeto educativo estava a ser cumprido. Acaso o projeto correspondesse à educação desejada para os seus filhos, perguntariam se haveria por ali algum professor que ainda não tivesse morrido. E, se houvesse coerência entre o projeto escrito e a sua prática, nada obstaria que as crianças fossem matriculadas.
Infelizmente, a prática da quase totalidade das escolas era oposta ao que estava escrito no seu projeto educativo. Por exemplo: em quase todos os projetos educativos, as escolas se comprometiam a fazer dos seus alunos seres humanos autónomos. Se, nessas escolas se “dava aula”, como se desenvolveria autonomia em sala de aula?
Em sala de aula, se impregnava os jovens seres de heteronomia. Claramente em contradição com o teor do projeto escrito, essa prática desenvolvia nos alunos dependência, obediência formal, submissão. A prática era a negação do projeto e a negação do direito à educação.
E era um “salve-se quem puder”. Quem tinha dinheiro remetia os filhos para práticas de “ensino doméstico”, quem tinha empregada doméstica empurrava os filhos para o “ensino individual”. A Educação vivia sob um manto diáfano de fantasia, feita de incoerência, à semelhança de movimentos sociais de então.
Em Portugal, um cristianismo obtuso havia produzido católicos “não-praticantes”. No Brasil, deparei com freireanos “não-praticantes”, que teorizando o freireano diálogo e denunciando a “educação bancária”, não praticavam a freireana “interação coletiva” e, na prática, faziam “educação bancária”.
Eram os “porquenins”, seres nem sim, nem não que, metaforicamente, vos apresentei nas cartinhas escritas, quando a Alice nasceu. Os porquenãos assim se chamavam por não saberem explicar por que faziam o que faziam. Porquenins eram pássaros sempre de acordo, ora com uns, ora com outros, conforme a ocasião, aliados dos porquenãos, a quem competia vigiar o cumprimento das normas e rituais de adestrar.
Nesse tempo de ignomínia, a infância permanecia cativa de hediondas práticas. Crianças de tenra idade tentavam suicídio. E havia quem desistisse, quem se refugiasse em paraísos artificiais. Havia quem me dissesse que não deveria fazer comentários críticos, nem falar de lamentáveis ocorrências.
Dizei-me, netos queridos, se não se deveria denunciar nefastas situações. Se, amorosamente, não seria nosso dever indeclinável denunciar, com palavras doces e amargas, de maneira serena e firme.
Por: José Pacheco
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