Ponta d’Areia 23 de julho de 2043
Netos queridos, não estranheis que eu insista em vos dar a conhecer papeis velhos, memórias de fundo de baú. Eles são prova de que o vosso avô muito esperançou, até ter tomado uma delicada decisão.
Por volta de julho de vinte e três, os apelos recebidos via email e nas redes sociais não paravam de chegar.
“Prof José, recentemente, ouvi de uma amiga de classe social diferente da minha, dizendo que meu filho, que está no segundo ano, estava aprendendo o que o dela, no primeiro ano de uma escola particular estava aprendendo. Como se ele não fosse inteligente, ou digno educação qualidade!
Ela me acompanhou na minha saga em conseguir uma vaga, uma bolsa em escolas particulares.
Enquanto mãe, é muito doloroso enviar o filho para uma escola com um método em que você não acredita. Mas, é a única opção que temos. Método conservador é o da escola para onde tenho levado meu filho. Todos os dias, ele chora e não quer ir para a escola. A psicóloga identificou que ele, na educação infantil, esteve no sesc e que, por isso, o método da escola atual tem-lhe causado sofrimento.
A escola prende as crianças entre 4 paredes, não tem as janelas abertas, só tem 15 minutos de recreio e não tem biblioteca e ele ama ler. Todos os dias, traz muito dever para fazer.
Desculpa o desabafo. É triste ver quantas vezes a escola da comunidade não pode funcionar por conta violência, porque falta o professor, ou falta o lanche. Triste ver crianças do quinto ano não sabendo escrever os próprios nomes completos. É uma história que tem vindo de gerações.
Temos o coração e desejo de ver nossa comunidade transformada através da educação. E precisamos de você para mudar nossas manchetes dos jornais.”
Na véspera, tinha ido com a Ludi visitar uma comunidade carente de tudo, exceto de dignidade, que a levava a reivindicar um direito, que lhe era negado. Com a Ludi e a Karina, assumi um compromisso, o início de um projeto.
A escola da rede pública estava sucateada, reproduzia desigualdade social, enquanto a administração educacional adotava absurdos como a “aula invertida”. Na Internet, surgiam simulacros de inovação, sob a forma de cursos e “aulas gratuitas”. As tecnologias digitais se constituíam em mais uma panaceia, que comprometia a substituição de um obsoleto sistema de ensino para sistemas de aprendizagem.
Quando, fraternalmente, eu questionava os meus colegas de profissão sobre o seu “modus operandi” e sobre o que os impedia de assumirem um compromisso ético, escutava a inevitável resposta:
“Que queres que faça? É o sistema!”
A culpa era do “sistema” de um malfadado sistema, que os meus colegas de profissão alimentavam. Se me atrevesse a ir além de uma singela pergunta, teria de mudar de assunto, ou correr o risco de se irritarem. Talvez os meus colegas desconhecessem a existência de gente simples e sábia, que começava a sair do anonimato e, amorosamente, questionava o dito “sistema”.
Aceleradas mudanças sociais, a inovação tecnológica, a pesquisa no campo das neurociências e no da inteligência artificial, a convergência entre teoria da complexidade e produção científica radicada no paradigma da comunicação, exigiam que se reconhecesse a necessidade de operar novas e profundas ruturas.
Anunciava-se a aprendizagem centrada na relação, na criação de vínculo. À chegada da 5.0, enquanto a universidade e a maioria das escolas estiolavam no “dar aula”, fizemos “a nossa parte”, ajudamos a conceber uma nova construção social de educação.
Contar-vos-ei como tudo aconteceu. E essa estória começará assim: Era uma vez, numa comunidade de Niterói…
Por: José Pacheco
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