Morro do Estado, 27 de agosto de 2043
Encontrei no fundo do baú das velharias uma mensagem reencaminhada pela minha amiga Tina. Já lá vão vinte aninhos e creio ser oportuno vo-la dar a conhecer. Ela me fez recordar o tempo passado na velha faculdade de psicologia, às voltas com tentativas de “explicação” de certos comportamentos e atitudes de seres humanos considerados “normais”.
A Tina referia-se a um filme recomendado pela Cássia – o “Experimenter” – enquanto refletia sobre relações humanas e concluía que nos conectamos mais com a ordem e menos com a dor.
“Em 1961, na Universidade de Yale, o psicólogo Stanley Milgram realizou uma série de experiências sobre a obediência.
A investigação, que decorreu ao mesmo tempo que o julgamento de Eichmann (o criminoso de guerra nazi que alegou obediência como defesa durante o seu julgamento), pretendia explicar a relação das pessoas com a autoridade. A violência da experiência agitou a comunidade científica, e gerou admiração por Milgram, mas também acusações de sadismo e de manipulação.
Os professores “fazem o que fazem”, com a compreensão de que estão cumprindo ordens. O sistema os obriga a controlar as crianças de forma a padronizar o currículo e a aprendizagem, a tratar a escola como uma esteira de linha de montagem de uma fábrica. Se a criança por ela passar e não aprender, culpada deverá ser a esteira, que foi rápida demais.”
Uma profunda normose se instalara, ao longo de décadas de incitamento a uma competitividade negativa e ao conformismo. Mas, estávamos prestes a entrar na última semana de preparação de profundas mudanças. Começara a contagem decrescente para o início de setembro e o reinício de um ciclo formativo e performativo. Dessa vez, irreversível, incoercível, irrefreável, porque, durante mais de vinte anos, o vosso avô havia contraído cumplicidades, sintonias, sincronicidades.
Estou sendo, voluntariamente, gongórico, para sublinhar a importância de ter criado uma equipe. A Tina, o Leo, a Edilene, a Claudia, a Valéria, o Mauro, a Zizi, o Bruno, o Antônio, a Cecília, a Paula, o Vinícius, a Karina, o Conrado, a Vovó Ludi e muitos outros educadores e educadoras iriam assumir a pilotagem de processos de mudança, chegava o tempo de o vosso avô manifestar o dom do desapego.
A essa fraterna equipe competia assegurar a materialização de um vasto conjunto de intenções, começando por se efetivar a corresponsabilização na construção e gestão dos projetos a estruturação do trabalho em equipe, para assegurar o efetivo cumprimento dos projetos das escolas.
Esses projetos eram desenvolvidos em espaços de cultura, ciência e arte, na consideração de que todo o conhecimento (erudito, ou popular) era válido e de que os saberes não eram propriedade individual, ou de exclusiva produção numa escola-prédio.
O estímulo do diálogo e a mediação de conflitos, tanto quanto a valorização da diversidade e das diferenças, foram valiosas contribuições para a promoção de equidade. Urgia providenciar sustentabilidade social, econômica, ecológica e cultural, que conduzissem a uma nova forma de relação do ser humano com o contexto planetário, a uma nova visão de mundo.
À semelhança do que na Ponte se fizera, anos antes, se outorgava efetiva participação às comunidades, nomeadamente uma representação maciça nos órgãos de direção e de tomada de decisão, no âmbito local, extinguindo, gradualmente, órgãos unipessoais, como o de diretor, por serem desprovidos de autonomia – diretores e gestores estavam submetidos ao “dever de obediência hierárquica”. cativos do “fantasma de Milgram”.
Por: José Pacheco