Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXIX)

Morro do Estado, 27 de agosto de 2043

Encontrei no fundo do baú das velharias uma mensagem reencaminhada pela minha amiga Tina. Já lá vão vinte aninhos e creio ser oportuno vo-la dar a conhecer. Ela me fez recordar o tempo passado na velha faculdade de psicologia, às voltas com tentativas de “explicação” de certos comportamentos e atitudes de seres humanos considerados “normais”.

A Tina referia-se a um filme recomendado pela Cássia – o “Experimenter” – enquanto refletia sobre relações humanas e concluía que nos conectamos mais com a ordem e menos com a dor. 

“Em 1961, na Universidade de Yale, o psicólogo Stanley Milgram realizou uma série de experiências sobre a obediência. 

A investigação, que decorreu ao mesmo tempo que o julgamento de Eichmann (o criminoso de guerra nazi que alegou obediência como defesa durante o seu julgamento), pretendia explicar a relação das pessoas com a autoridade. A violência da experiência agitou a comunidade científica, e gerou admiração por Milgram, mas também acusações de sadismo e de manipulação.

Os professores “fazem o que fazem”, com a compreensão de que estão cumprindo ordens. O sistema os obriga a controlar as crianças de forma a padronizar o currículo e a aprendizagem, a tratar a escola como uma esteira de linha de montagem de uma fábrica. Se a criança por ela passar e não aprender, culpada deverá ser a esteira, que foi rápida demais.” 

Uma profunda normose se instalara, ao longo de décadas de incitamento a uma competitividade negativa e ao conformismo. Mas, estávamos prestes a entrar na última semana de preparação de profundas mudanças. Começara a contagem decrescente para o início de setembro e o reinício de um ciclo formativo e performativo. Dessa vez, irreversível, incoercível, irrefreável, porque, durante mais de vinte anos, o vosso avô havia contraído cumplicidades, sintonias, sincronicidades. 

Estou sendo, voluntariamente, gongórico, para sublinhar a importância de ter criado uma equipe. A Tina, o Leo, a Edilene, a Claudia, a Valéria, o Mauro, a Zizi, o Bruno, o Antônio, a Cecília, a Paula, o Vinícius, a Karina, o Conrado, a Vovó Ludi e muitos outros educadores e educadoras iriam assumir a pilotagem de processos de mudança, chegava o tempo de o vosso avô manifestar o dom do desapego. 

A essa fraterna equipe competia assegurar a materialização de um vasto conjunto de intenções, começando por se efetivar a corresponsabilização na construção e gestão dos projetos a estruturação do trabalho em equipe, para assegurar o efetivo cumprimento dos projetos das escolas.

Esses projetos eram desenvolvidos em espaços de cultura, ciência e arte, na consideração de que todo o conhecimento (erudito, ou popular) era válido e de que os saberes não eram propriedade individual, ou de exclusiva produção numa escola-prédio.

O estímulo do diálogo e a mediação de conflitos, tanto quanto a valorização da diversidade e das diferenças, foram valiosas contribuições para a promoção de equidade. Urgia providenciar sustentabilidade social, econômica, ecológica e cultural, que conduzissem a uma nova forma de relação do ser humano com o contexto planetário, a uma nova visão de mundo.

À semelhança do que na Ponte se fizera, anos antes, se outorgava efetiva participação às comunidades, nomeadamente uma representação maciça nos órgãos de direção e de tomada de decisão, no âmbito local, extinguindo, gradualmente, órgãos unipessoais, como o de diretor, por serem desprovidos de autonomia – diretores e gestores estavam submetidos ao “dever de obediência hierárquica”. cativos do “fantasma de Milgram”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXVIII)

Ingá, 26 de agosto de 2043

Em pioneiras aplicações de acordos de convivência, havia quem se queixasse:

“Eles são ingratos. Fizemos combinados e eles não os respeitam. Por exemplo, o erguer o braço para pedir a palavra. 

Ontem, estive mais de dez minutos de braço erguido, até que acabasse a zoeira.”

Práticas de diálogo e gestão de conflito, praticar sociocracia, interiorizar acordos, era processos longos, que requeriam dos educadores o equilíbrio entre amorosidade e firmeza, em doses adequadas a cada situação.

Educadores e educandos deveriam definir e vivenciar dispositivos e práticas, que, de forma articulada, buscassem cuidar de princípios e valores, pesquisar e exercitar procedimentos e práticas de diálogo, a gestão de conflitos intra e interpessoais, a sociocracia e a não-violência, a partir de valores e princípios. E isso não acontecia da noite instrucionista para o dia-a-dia comunicacional.

Era tarefa ciclópica, que requeria tempo, paciência, resiliência, o exercitar de ferramentas de facilitação de processos participativos, que promovessem o engajamento e o desenvolvimento do trabalho em equipe, bem como o cuidar dos conflitos e estabelecer redes de apoio.

O desenvolvimento de competências socioemocionais não era tão fácil como era descrita e proposta nas teses produzidas sobre o assunto e elaboradas por académicos distantes do chão de escola. E era ainda mais complexa a missão, quando se tratava de inserir nas novas práticas mecanismos de envolvimento e participação da comunidade. A começar por libertar o professor do gueto da sala de aula e do prédio-escola, no reconhecimento de que o ethos organizacional de uma escola dependeria da sua inserção social e de relações de proximidade com outros atores sociais.

Assumindo que as escolas eram as pessoas agindo em espaços públicos, em nodos de redes comunitárias incubadoras de sustentabilidade, se devolvia as escolas às comunidades, na partilha da responsabilidade de educar. Se concebia novas construções sociais de aprendizagem, que integrassem as dimensões escolar, familiar e social, e contemplassem necessidades sociais contemporâneas, a participação ativa de agentes educativos locais, dentro e fora do prédio-escola, contribuindo para a coesão social.

Se não houvesse professores vivos nas escolas, eram criadas redes de voluntariado e de engajamento comunitário no processo educativo. A propósito, ficai sabendo que, na Escola da Ponte dos idos de setenta, todos os professores morriam (profissionalmente) aos vinte, sendo enterrados aos sessenta ou setenta. Restou-me erguer um projeto com os pais dos meus alunos.

O mesmo aconteceu nos idos de vinte, quando projetos inovadores marginais partiam da iniciativa de famílias conscientes dos nefastos efeitos de um cortejo de horrores a que chamavam “administração pública”. O “sistema” era desgovernado por secretários de educação que agiam como aprendizes de feiticeiro. Uma secretaria juntou a um já longo rol de disparates a regra de reprovação de alunos que faltassem às aulas em quinze dias seguidos. 

Como se não bastasse a contínua imposição de uma “educação bancária”, essa medida restringia ainda mais o direito básico à educação assegurado pela Constituição.

Netos queridos, naquele tempo, a Educação e as escolas permaneciam à mercê de políticos debutantes e da corrupção intelectual de “especialistas”. Sei que custa a crer que isso tenha acontecido. E, se perguntais o que fazíamos perante o descalabro, vos responderei que, feitos beija-flor, lá íamos fazendo a nossa parte. 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXVII)

Icaraí, 25 de agosto de 2043

Foram tantas e tão profundas as transformações operadas entre agosto e dezembro de vinte e três, que delas será difícil fazer uma síntese. Tentarei. E vos peço que me perdoeis, queridos netos, se a leitura se tornar cansativa. Tenho como intenção deixar para gerações vindouras a descrição de anónimos gestos de amorosidade e coragem. 

Foi a minha amiga Maria Paula quem o disse e escreveu num recadinho do velho facebook:

“”A mudança não vive apenas no amor, mas também na coragem”.

Nos últimos meses de vinte e três, cultivamos estratégias que permitissem ao estudante expressar a sua singularidade e desenvolver projetos de seu interesse, com impacto na comunidade. 

Instalamos dispositivos de integração curricular, para produção de conhecimento multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar. Debatemos a função social da escola, tentando romper com a concepção conservadora de ciência, currículo e conhecimento, questionando práticas, compreendendo que a educação é construção coletiva. E reconfiguramos práticas escolares, conferindo-lhes fundamento na lei e numa ciência prudente, com referência ao paradigma da aprendizagem e da comunicação.

Possibilitamos uma participação ecológica, em equipes constituídas por psicólogos, terapeutas, sociólogos e outros agentes educativos. Apoiamos a realização de estágios no contexto de práticas inovadoras, propiciando a reelaboração da cultura pessoal e profissional dos professores. 

Introduzimos a prática da tutoria, dispositivo central na passagem do paradigma da instrução para o da aprendizagem e o da comunicação, garantindo pleno acesso a educação integral, a aprendizagem para além do domínio cognitivo, contemplando o desenvolvimento no domínio pessoal e sócio moral.

Redefinimos o papel do professor, na transição entre o modelo “tradicional” e uma profissionalidade assente na prática da mediação pedagógica, assegurada por “designers educacionais”, através de projetos de produção de vida e de sentido para a vida. 

No âmbito de uma avaliação formativa, contínua e sistemática, implementamos a elaboração de portfólios e criamos uma plataforma virtual aprendizagem. Evidenciamos o desenvolvimento de habilidades e competências individuais e de equipe, tanto por meio de trabalhos finais como rascunhos, de natureza variada, para refletir diferentes tipos de desempenho e não apenas aplicações diretas de conhecimentos.

Efetivamos a autoavaliação através de relatório crítico, inventários de atitudes, registros de observação, registos de incidentes críticos, listas de verificação etc. Isomorficamente, acontecia uma avaliação alinhada com a aprendizagem.

Em suma: passamos do consumo de informação proveniente do discurso do professor ou da leitura de livros didáticos para a produção de conhecimento (currículo) e a partilha de saberes, gerando competências. 

Para tal, introduzimos estratégias voltadas para tornar a instituição educativa espaço de produção de conhecimento e cultura, que conectasse os interesses dos estudantes, os saberes comunitários e os conhecimentos acadêmicos, para transformar o contexto e lhe conferir sustentabilidade.

Respeitada a diversidade, na prática de uma gestão curricular diferenciada, a escola se consituiu em lócus de humanização e oportunidade de inclusão.

No encontro formativo realizado no 26 de agosto de há vinte anos (11:00 de Brasília / 15:00, de Portugal https://meet.google.com/jrj-bfyu-hji), tudo isso foi conversado, “explicado”, criticado…  

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXVI)

Escola Ayrton Senna (Niterói), 24 de agosto de 2043

Netos queridos, para que possais compreender o alcance da mudança operada nos idos de vinte e três, irei manter também nesta cartinha um registro mais ou menos didático, começando por descrever aspectos a serem desenvolvidos no exercício de um singular currículo, um currículo de caráter uno e múltiplo.

A partir de necessidades e desejos de cada ser humano, integravamos conteúdos, competências e capacidades de uma base curricular, visando estimular talentos, cultivar dons do sujeito aprendente.

Acompanhamos os projetos de vida de cada ser humano único e irrepetível. No desdobramento do currículo da subjetividade era respeitada a especificidade do seu repertório linguístico e cultural, os estilos de inteligência predominantes e o seu ritmo de aprendizagem. 

O currículo da comunidade partia de necessidades, desejos, problemas da população do território de contexto, promovendo-se a integração comunitária da escola. O conhecimento produzido no decurso dos projetos (“evidências de aprendizagem”) era vertido em ações, fomentando desenvolcimento sustentável.

Na prática de um currículo da consciência planetária, o processo de autoconhecimento se harmonizava com necessidades e problemas da sociedade contemporânea e do planeta, tendo em consideração os dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as quatro dimensões da sustentabilidade (social, econômica, ecológica e visão de mundo).

Eram desenvolvidas habilidades socioemocionais, assegurando, através do fomento de competências transversais, o pleno desenvolvimento pessoal e social do ser humano.

Nos encontros realizados na Casa Reviver, na CAPUerj, no SESC do Rio, nas escolas (na “Ayrton” fiz a fotografia que junto a esta cartinha) e em organizações do território do Morro do Estado, fomos colhendo informações sobre o potencial educativo da comunidade, um elevado potencial humano nos educadores e a sua decisão de agir. 

Um projeto local sustentável procedia da conceção de um currículo voltado para a formação integral da pessoa, no reconhecimeento da multidimensionalidade da experiência humana – afetiva, ética, social, cultural e intelectual (e até mesmo espiritual) e implementando três dimensões curriculares – a da subjetividade, a da comunidade e a da consciência planetária – de forma integrada e integral.

Nesse tempo, ainda havia quem acreditsse que uma “educação integral” seria passivel de concretização em sala de aula. Havia um certo consenso em torno da utilidade do prolongamento da jornada escolar e na criação de contraturnos de “desculpabilização curricular”. Também havia quem tivesse fé nas virtudes das “aulas invertidas”, nos “ensinos híbridos”, na utilização acéfala do digital e em outras pedagógicas inutilidades. Eram realizados congressos, seminários, encontros vários, nos quais a definição precisa, (fundamentada!) do conceito estava ausente. 

Eu lamentava a participação nesses eventos de educaores que eu admirava, porque as práticas de educação integral eram incompatíveis com a manutenção da escola da sala de aula.

À margem (e até mesmo marginalizados) desses eventos, propiciávamos condições da prática de educação integral, na superação de lógicas fragmentárias, integrando as contribuições da diversidade de instituições e agentes educativos locais, religando a educação escolar com a familiar e com a social, para que a aprendizagem acontecesse a par do desenvolvimento do pensar, com a formação do caráter e o exercício da cidadania.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXIV)

Niterói, 22 de agosto de 2043

Num documento emitido por uma secretaria de estado da educação, eu li:

“Quando a comunidade se constitui como parte atuante da escola, com voz e participação na construção coletiva do projeto político-pedagógico, surge o sentido de pertencimento, isto é, a escola passa a pertencer à comunidade, que, por sua vez, passa a zelar com mais cuidado por seu patrimônio; a escola começa a sentir-se pertencente àquela comunidade e começa a criar, planejar e respirar projetos de interesse de sua gente, da sua realidade.”

Como era “normal”, nada disso encontrei nas escolas desse estado, e foram muitas aquelas que conheci por dentro. Só encontrei extraordinários educadores que, na solidão da sala de aula, operavam “milagres”. E encontrei na obra de Philip Roth (“A Mancha Humana”) o retrato desses educadores:

“Aqui só há essas crianças, aquelas a quem não é possível chegar e a quem não se chega, e como eu sou muito emotiva no que diz respeito aos meus alunos e ao meu ensino, isso afeta todo o meu ser… todo o meu mundo. 

E a escola, a direção… não presta, pai. Temos uma diretora sem a mínima visão do que pretende e temos uma misturada de pessoas a fazerem o que julgam ser o melhor. Mas que não é necessariamente o melhor. 

Quando aqui cheguei, há doze anos, foi formidável. A diretora era, de facto, boa. Deu uma volta completa à escola. Mas agora tivemos vinte e um professores em quatro anos. O que é muito. Perdemos uma quantidade de gente boa. E, há dois anos, passei para Recuperação de Leitura, porque as aulas tradicionais me estavam a consumir. Dez anos do mesmo, dia após dia. Não podia suportar mais.”

Fomos ao encontro dos educadores prisioneiros de sala de aula. E, nas salas de aula, partimos do que eram para quilo que desejavam ser. Partilhamos um “Plano de Inovação”, para reconfigurar práticas educativas, que não se enquadravam na conceção de novas construções sociais de aprendizagem. 

Concebemos práticas integradas, na confluência dos paradigmas da instrução, da aprendizagem e da comunicação, religando instituições (Família, Sociedade e Escola), unindo Arte e Cultura, Saúde e Educação, em projetos de educação integral, numa nova construção social, que a todos garantiu o direito à educação. Promovemos o crescimento do educando em todos os aspetos: físico, mental, intelectual, emocional, afetivo, psíquico, para que ele pudesse atuar e transformar o seu meio, de forma ética, na perspetiva do desenvolvimento sustentável do ser humano e da comunidade em que se integravava. 

Cocriamos protótipos de comunidade de aprendizagem, a partir de círculos de aprendizagem, de turmas-piloto e de “comunidades de referência”.

Ajudamos a autonomizar, legal e cientificamente, projetos com potencial inovador. 

Desenvolvemos processos formativos transformadores e disseminamos novas práticas de desenvolvimento curricular.

Nesse agosto de vinte e três, a resiliente Cecília não se cansava de distribuir gentileza e entusiasmo: 

“Mais uma semana começa e com ela trago a vontade. Vontade de fazer, de produzir, de aprender, de agradecer, de colaborar, de evoluir… Vontade de estar ao lado de quem me faz bem e de fazer bem a quem está ao meu lado! 

Que venha uma semana de bonitezas, gentilezas e harmonia!”

Também eu enviava convites para os “encontros de sábado” aos professores que, como a Cecília, ainda estavam vivos: 

Novas Construções Sociais de Aprendizagem e Educação. 

Início: 12 de agosto de 2023. 

11:00 às 12:00, no horário de Brasília / 15:00 às 16:00, no horário de Portugal.

https://meet.google.com/jrj-bfyu-hji 

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXIII)

Lagoa das Amendoeiras, 21 de agosto de 2043

O Senhor Wilson nos levou até Mendes. Por lá ficamos três dias, aprendendo. O Senhor Orlando de lá nos trouxe. E a Vovó Ludi tivera ensejo de um primeiro contato com a Equipe de Educação Humanizada e com a equipe de uma secretaria de educação fadada para ficar na história. 

A Maria Paula não estava sozinha. A Adélia, o André, o Luís, dezenas de secretários de educação brasileiros e diretores de agrupamento portugueses partilhavam a decisão de não mais esperar, agiam. Tal como a Ponte agira, meio século antes, de um modo que António Nóvoa deixara claro, num solidário artigo:

“A Escola da Ponte não se constituiu em mais um “fait-divers”. 

Exatamente! A Ponte sempre incomodou os acomodados, por ser um verdadeiro analisador da realidade educativa. Não se tratava de colocar mais um remendo num andrajoso modelo educacional, mas do resgate do significado da expressão “Escola Pública”. A Ponte afirmava a possibilidade da excelência académica com inclusão social. Reafirmava a possibilidade de a todos assegurar o direito à educação… em autonomia. O exercício de autonomia era condição sine qua non de mudança e de inovação. 

Recusamos o faz-de-conta da autonomia que o ministério oferecia. Desde a primeira hora do “Fazer a Ponte” reivindicamos o estatuto de “viveiro de futuro” (expressão usada por um dos muitos estudiosos que, nas décadas de setenta e oitenta à Ponte acorriam). Mas, somente ao cabo de 28 anos, a nossa escola foi, oficialmente, reconhecida como autônoma. 

Netos queridos, dissestes ter gostado de algumas cartinhas “fofas” (expressão vossa) e esperançosas. Lamento ter de vos dar a conhecer, nesta cartinha, uma realidade para além da “fofura”, pois foi bem dura a labuta daqueles que, como o vosso avô, arriscaram inovar – inúmeros obstáculos enfrentamos.

Darcy Ribeiro realizou um diagnóstico dos obstáculos cruciais enfrentados por uma verdadeira Escola Pública. Para o Mestre, o maior dos obstáculos seria a nefasta ação de um certo tipo de intelectual: o áulico, corresponsável pela legitimação “cientifica” de trágicas decisões de política educacional.

Os áulicos infestavam ministérios, certas secretarias e outros lugares mal-frequentados. Presidiam a comissões de “especialistas”, exibiam-se em gongóricas e anestesiantes palestras, nos palcos de inúteis congressos.  Prosperavam, vivendo à sombra do poder, produzindo ideias irrelevantes, planos inconsequentes, contribuindo para destruir qualquer esboço de inovação. Manifestavam peculiares sintomas de esquizofrenia, pois diziam que o aluno deveria estar no centro do processo de aprendizagem, enquanto praticavam ensinagem, em aulas centradas… no professor. 

Talvez nem fosse esquizofrenia, mas o comportamento antiético de quem, sendo conhecedor dos maléficos efeitos de práticas fundadas no paradigma da instrução, contribuía para as manter. Em assessorias e coordenações de projetos da iniciativa do sistema, os áulicos legitimavam paliativos de um esclerosado modelo educacional, pecando por omissão, cumprindo o vil papel de evitar que mudanças acontecessem.

Estávamos conscientes dos obstáculos a ultrapassar. Sabíamos que, se o maior aliado de um professor era outro professor, também sabíamos que o maior inimigo de um professor ético, era… outro professor. Mas, a crise ética era, também, tempo de oportunidades. E nada era mais concebível do que o inevitável aparecimento de um instinto de verdade honesto e puro. Foi por essa altura que aconteceu o que vos irei contar nas próximas cartinhas.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXII)

Mendes, 20 de agosto de 2043

Ainda andarilhando por terras darcinianas, que percorri, faz agora, precisamente, vinte anos, vou relendo “O Povo Brasileiro”. Estou crente de que o câncer consumiu o último sopro de vida de Darcy e o impediu de ir além. Redescubro nessa obra “inacabada” velhos motes de eternizadas causas. 

“A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres aos ricos. A ela se soma a discriminação que pesa sobre índios, mulatos e negros. A luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi – e ainda é – a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional.”

Em “O Povo Brasileiro”, Darcy nos conduz pelos caminhos da formação de um povo e de uma nação. “Brasil” é uma palavra que pertence à toponímia utópica de tempos medievais, designando uma terra da felicidade imaginada. Mas, não foi esse país sonhado que Darcy descreveu, quando a sua pátria dormia distraída, sem perceber que era subtraído em tenebrosas transações.:

Como vos disse, nas cartinhas imediatamente anteriores a esta, Darcy tentara, nos idos de oitenta, criar condições de se fazer um país de todos, através da garantia de uma boa educação para todos. Porém, nos idos de vinte, a Lei de Bases, que fez aprovar nos idos de noventa, continuava sendo letra morta. De imbecilidade em imbecilidade, se ia adiando a agonia do velho sistema de ensinagem.

O governo de um estado determinou que diretores das escolas assistissem, semanalmente, a uma ou a duas aulas dadas pelos seus professores. E que produzissem relatórios sobre o que observassem nas salas de aula. O objetivo anunciado seria o de “fortalecer o protagonismo e autonomia do educador em sala de aula” (sic). 

Em pleno século XX, ainda havia quem desse aula, em sala de aula. E “especialistas” saídos das catacumbas da educação do século XIX consideravam importante que a secretaria esclarecesse o que seria feito com os relatórios,

“Porca miséria!” – diria o compadre de Cense (em outra cartinha, dele vos falarei). E o que restava de instrucionismo se refletia na decisão de o mesmo estado não aderir ao programa nacional de livros didáticos e oferecer apenas conteúdo digital. Após pressões várias, decidiram imprimir e encadernar livros digitais.

De disparate em disparate, esse “cortejo de horrores” competia com o inútil debate sobre o “novo ensino médio”. Aprendizes de feiticeiro insistiam na reciclagem de uma distopia. Quando alguém queria saber o que o vosso avô “pensava sobre o assunto”, respondia que nada pensava, apenas perguntava: 

“O que é o “ensino médio”? Por que existe “ensino médio”? Em que século estais?” 

Nada respondiam e deixavam de perguntar a minha opinião, sabe-se lá porquê!

Os ingénuos autores de uma “reforma” acreditavam que o sistema melhoraria quando, “pelo menos um período por dia fosse dedicado ao desenvolvimento de atividades interdisciplinares”. Só “um período por dia”! Ou “quando houvesse espaço para que professores trabalhassem por projetos em algumas disciplinas”. Só em algumas disciplinas! Ou, ainda, quando “no último ciclo, os alunos fossem protagonistas do próprio aprendizado”. Porque, na opinião desses “especialistas”, somente no último ciclo aconteceria aquilo a que chamavam ”emancipação social e cidadã dos alunos” (sic). 

Pobre Darcy! Imaginava-o, dando voltas no seu túmulo, no cemitério de Botafogo. Sabia que se confessara ateu, mas, se alguma influência tivesse junto de Deus, eu lhe pedia que Lhe pedisse para perdoar áulicos, especialistas e governantes, porque eles não sabiam o que faziam.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXXI)

Mendes, 19 de agosto de 2043

Estávamos em agosto de vinte e três. Mais um processo de auto-formação-com-o-outro começava. Encontrávamo-nos nas manhãs de sábado (nas tardes, em Portugal), mas o tempo entre encontros era, também, de formação, porque a mudança, como diria Ardoino no seu “Propos actuels sur l’éducation”, não poderia ser promovida somente de fora, ao nível das superestruturas e dos decretos institucionais, se não fosse, ao mesmo tempo, no interior, pelas vozes daqueles que a ela aspiravam e que a iriam, finalmente, exercer. 

Certo é que, numa formação de caráter isomórfico, foram operadas profundas transformações, muitas “turmas-piloto”, muitas escolas, universidades, agrupamentos de escolas, secretarias de educação e educadores empreenderam caminhos novos, a mítica “escola do futuro” aconteceu no presente. Pois, como diria o meu saudoso amigo Steve Stoer, seria inútil formular projeções sócio históricas, porque não havia na história dos profissionais da educação um futuro pré-determinado. O amanhã seria o resultado aproximado de opções tomadas no hic et nunc do chão de escola.

Sempre fui avesso ao uso do jargão científico. Abrirei uma exceção, para citar palavras de um jovem centenário de nome Edgar, que, há cerca de vinte anos, legitimava as nossas opções formativas: 

“Como nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar, isolar e, não, a unir os conhecimentos, o conjunto deles constitui um quebra-cabeças ininteligível. As interações, as retroações, os contextos e as complexidades que se encontram na man’s land entre as disciplinas se tornam invisíveis. 

Os grandes problemas humanos desaparecem em benefício dos problemas técnicos particulares. A incapacidade de organizar o saber disperso e compartimentado conduz à atrofia da disposição mental natural de contextualizar e de globalizar.

A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. É uma inteligência míope que acaba por ser normalmente cega. Destrói no embrião as possibilidades de compreensão e de reflexão, reduz as possibilidades de julgamento corretivo ou da visão a longo prazo”

Na França dos “sete saberes necessários à educação do futuro”, o Mestre Morin apontava caminhos que um visionário de nome Darcy tentou percorrer. Em Mendes se partiu de um tempo distópico para o anúncio e consolidação da utopia sonhada por Darcy. A Escola Pública de Anísio e Darcy ressurgia, num país que exilara a geração de ouro dos pioneiros do escolanovismo. Ao seu labor, juntávamos contribuições do paradigma da comunicação. E a primorosa equipe da secretaria de educação se preparou para ser um dos polos de referência de uma apenas sonhada nova construção social de aprendizagem.

No “Encontro de Mendes” de 83, visava-se concretizar diretrizes educacionais, num processo amplamente participado. Concluiu-se que a “escola pública” se desenvolvera alheia a realidade locais, que era uma “grande peneira de alunos”, e que se “culpabilizava” os professores pelo insucesso causado pela escola da sala de aula. 

No novembro de 1983, Mendes acolheu o Mestre nascido em Montes Claros. Em Brasília partiu para junto dos companheiros Florestan e Anísio, sem ter concretizado os seus desígnios. No novembro de há vinte anos, educadores românticos a Mendes acorreram, para celebrar a darciniana utopia – mais um ENARC, mais um tempo de fraterna partilha de dificuldades e êxitos.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXX)

Mendes, 18 de agosto de 2043

Fora em Mendes que a caminhada de Darcy recomeçara, nos idos de 1983. E, foi na Mendes de vinte e três que se celebrou a indignação de Darcy e se esboçou um projeto com a participação de centenas de educadores. Quarenta anos depois, no rescaldo do encontro de Mendes, vieram à memória palavras da minha amiga Tina:

“Mendes é uma referência em Educação Humanizada. Com apoio do prefeito Jorge, a dedicação da secretária Paula e o empenho do Observatório da Aprendizagem e de gestores das unidades escolares, já é possível ver a transformação de educadores e educandos.”

E as palavras da Valéria:

“Era uma vez, uma escola em Mendes que recebia crianças de muitos Mundos.

O amor, a sensibilidade e a escuta são temperos que moram nessa escola. Lá, as crianças cuidam e também são cuidadas entre si. O acolhimento, trazendo uns para os outros, a confiança e o aconchego moram nesse lugar. A empatia, a valorização de todos e a perceção de cada um são parte dos crachás que todos levam em seus corações.

Ali, as pessoas compartilham seus medos, em busca de apoio e segurança. Todas as conquistas são valorizadas, cada aluno é único e cada professor também. A humanização bateu na porta e do seu jeito já acontece nesse lugar.

João Gurito… escola de gente pra gente!”

Foi forte o impacto desses dias de são convívio e intenso trabalho. E muitos os testemunhos recolhidos, que provavam a vitalidade dos projetos das doze escolas de Mendes. 

Na “Hilda”, o Rayan sinaliza para a professora colegas que precisam de ajuda. E os leva para a “sala do contra turno”, onde se entreajudam. Na liberdade do fazer escolhas, trocam o “Posso Fazer” pelo “Já Fizemos”.

Na “Odete” e entre múltiplos prodígios, a Daniele psicóloga intensifica a criação de vínculos, enquanto a estagiária de psicologia confessa: “nada que nos ensinam na faculdade serve na prática”.

De escola em escola, colecionamos belas surpresas, fortes emoções. 

A Ludovina alfabetizadora se emociona, quando escuta a exclamação de uma criança: “Tia, estou lendo!”

A Priscila se emociona quando escuta um menino pedindo que ela fosse sua mãe e que o levasse para a sua casa, nesse fim de semana. Quando a Priscila lhe perguntou o que mais gostara, o menino respondeu: “Tomar banho de chuveiro”. Fora a primeira vez. Daí, a prece escutada pela Priscila: “Tia, eu quero morar na escola. Não quero ir embora!”

Na “Freitas”, a Kelly advogada dizendo que a sua vida passara da carência para a abundância, quando saiu do Rio para o Interior, numa imersão de autenticidade, confessando fragilidades (que eram de todos), dando largas à emoção. 

A sensibilidade da Valéria e do Mauro operava milagres, dava à luz “boniteza que a gente não enxerga” Aqui, acontecem coisas boas. Muitas vezes os alunos ensinam os professores. Eles dizem o que têm no coração” 

E a Maria Paula não conseguindo deter copiosas lágrimas. E eu as contendo. Enfim! Na “Semedo”, vozes caladas falavam. E voltávamos a evocar Darcy.

Atormentado pelo torpor das metástases, o Mestre ainda conseguiu traduzir “tudo o que o Brasil poderia ser e ainda não era”. A escrita de “O povo brasileiro” é reflexo do convívio com as comunidades do Xingu, uma mistura de experiências colhidas na espiritualidade africana, na sabedoria e tecnologias sociais de portugueses, italianos, alemães, japoneses, judeus, árabes e outros povos, um criativo caldo cultural, um enorme e sincrético potencial historicamente “entravado pela classe dominante medíocre que impede o desenvolvimento da civilização brasileira”.

Na Mendes de vinte e três, chegava o tempo de “desentravar”.

 

Por: José Pacheco

Open post

Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCXXIX)

Mendes, 17 de agosto de 2043

Me encantei com o encantamento da Tamires. Em cúmplices rodas de conversa, tímidos alunos se revelaram crianças abertas a surpresas, que “se abriam e queria apresentar trabalhos”. Que sorriam perante as folhas de alface, que haviam semeado na horta. Crianças de fala suave, respeitando sinais de pedido de palavra. Crianças que, presenciando uma professora molhada pela chuva, lhe fizeram uma promessa:

“Vamos juntar um dinheiro para comprar um carro para você.”

A recém-chegada Adriana mostrava-se surpreendida:

“São muito questionadores. Eles cobram direitos, mas também cumprem deveres. E, quando surge um problema e eu o vou resolver, já está resolvido. Eles já o resolveram. Eles se respeitam uns aos outros. Eu também trabalho em outra escola. La é diferente. Não vou nem falar! Levarei estas práticas para lá.” 

O Bruno, que “não é professor do terceiro ano, que é professor da escola”, diz ser possível efetuar mudanças:

“Todas as armaduras têm uma brecha” 

Pois tinham. E, num final de tarde, em Mendes, depois de colhidos deliciosos testemunhos de meigos atos, de um breve encontro emergiu uma deliberação: voltaríamos a praticar Darcy.

A clarividência do Darcy conduzira-o à conclusão de que a crise da escola era um projeto engendrado por pessoas, cujos ações iam na contramão da história. Esse malfadado projeto de escola e de sociedade engendrara uma “crise da educação, que não era uma crise, mas um projeto”. 

As obras do Mestre Darcy sobre a identidade da América influenciaram estudiosos latino-americanos críticos da visão eurocêntrica presente nos estudos sobre os povos originários do Brasil e do sul. Darcy afirmava que, nos trópicos, havia uma outra forma de se viver e de sentir a vida. A Educação do sul não era o atraso, mas o futuro do mundo.

No último dia de janeiro de vinte e dois, eu fora até ao lugar onde Darcy, quarenta anos antes, lançara o seu projeto de Educação Básica. Fui ajudar a Maria Paula e os professores de Mendes a celebrar o legado de Darcy. 

Reiteramos a promessa de voltar ao lugar do “Encontro de Mendes”. 

No fevereiro de vinte e dois, o sonho de Darcy já começara a tomar forma. Começara a demolição do aparato instrucionista. E a Maria Paula preparou o melhor de encerrar o ciclo de visitas às escolas, que iriam participar do projeto: a inauguração de um “Observatório da Aprendizagem”. 

Sala cheia de cidadãos de Mendes, de educadores, de amigos. A prefeitura fez-se representar pelo subprefeito Jiló. Esteve presente o Presidente do Conselho Municipal de Educação, vereadores e convidados. O breve discurso do jovem nonagenário Célio foi comovente. Observei a reação da Aline, as lágrimas de emoção verdadeira, que lhe caíram pelo rosto. Senti a presença de Freire, estava na companhia de educadores sensíveis, amorosos, corajosos. Freire estava bem acompanhado. Ali, havia verdade. 

Senti que valera a pena ter ido até lá. E prometi voltar. A Maria Paula tinha reunido uma equipe capaz de colocar a educação de Mendes no século XXI. Ali, se construiria comunidade. Ali, se tentava unir o que um sistema obsoleto de ensino havia desagregado. Celebrar Darcy não poderia consistir apenas em dissertar sobre o Mestre e sobre a sua obra. Seria, antes, atualizar e cumprir o seu projeto. 

Na assunção desse princípio, nas duas margens do Atlântico, algo imparável acontecia: o questionamento de “verdades eternas”, a indagação da origem de “instaladas culturas”. Por que não produzir teoria na prática (ou na práxis, melhor dizendo)?

Entre agosto e dezembro dos idos de vinte e três, praxeologicamente, agimos.

 

Por: José Pacheco

Posts navigation

1 2 3
Scroll to top