Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCCLXI)

Ilha dos Tigres, 18 de setembro de 2043

No mesmo dia, duas notícias me deixaram deveras incomodado. Uma professora se recusava “dar aula” a um aluno “especial” – abandono intelectual evidente e impune. Um diretor que, após a insistência da mãe de um autista, efetuou a matrícula da criança, mas avisando que não sabia ensiná-lo. Como poderia um professor dizer “não sei”? 

Algo semelhante aconteceu comigo. Foi nos idos de setenta e dois. Fui colocado numa escola da cidade do Porto. Na reunião da composição de turmas, a professora mais antiga ia distribuindo os alunos da primeira classe:

“Ó Dona Flora, de quem é filho este miúdo?

É neto do senhor doutor Horácio, minha senhora.

Então fica nesta lista. E este aqui?

Esse, minha senhora, é da “ilha” lá de baixo, é filho da mulher a dias da professora Fernanda. Não se sabe quem é o pai…

Então, vai para a turma do colega.”

O “colega” era eu. Perguntei qual era o critério da distribuição dos alunos.

“Não tem critério nenhum, colega! Você é o mais novo, apanha com aqueles que ninguém quer.”

Perguntei por que “não queria”.

“Por que não sei trabalhar com esses piolhosos, esses burros, que nem sabem quem é o pai.”

“Se não sabe, por que não vai aprender?”

A pergunta saiu-me cara. Furiosa, a velha docente saiu da sala e foi contar ao marido o sucedido, a minha “falta de respeito”. O marido era “informador” da polícia política da ditadura. Imaginai o que me aconteceu…

Entre esse dia e aquele em que fui obrigado a deixar essa escola, fiz aquilo que qualquer professor faria: aprendi modos de ensinar os “piolhosos e burros”. Eram crianças maravilhosas, apenas carentes de alimento e de afeto.

Trinta anos decorridos, o Paulo pediu-me conselho:  

“Qual será a melhor escola para matricular a minha filha na primeira classe?” 

Lacónica e sinceramente, respondi: 

“Há bons professores em todas as escolas.” 

O Paulo não desarmou: 

“Não é bem assim. Na minha primeira classe, de há trinta anos, eu tive dois professores. Um tratou-me tão bem que eu nunca mais o esqueci. A outra foi uma cabra, que me fez odiar tanto a escola, que me raspei dali para fora

“Como é que foi?” – retorqui. 

“Eu era muito pobre e a professora pôs-me ao fundo da sala, ao lado da fila dos burros.” 

“E o outro professor?” – demandei.

“Esse era muito diferente. Tratava-nos a todos com meiguice e paciência. Nunca nos bateu. E nós até éramos para aí mais de trinta e difíceis de aturar. Se eu hoje sou alguma coisa devo-o a ele. Ainda hoje me lembro dele, quando tenho de decidir da minha vida.”

“Sabes o que é feito desse professor, onde estará?”

“A meio da primeira classe, ele chamou-nos, um a um, ainda me estou a lembrar quando chegou a minha vez. Abaixou-se, pôs-se da minha altura e disse-me: Paulinho, eu vou ter de ir embora, não quero mas tenho de ir para a guerra.

Até me deu vontade de chorar, mas disse que sim co’a cabeça, que eu até sabia que o Eduardo, lá da minha rua, tinha morrido na guerra de Angola.” 

Um súbito pressentimento me levou a perguntar:

“Paulo, em que escola andaste? Em que ano entraste na escola?”

O Paulo respondeu. E era o mesmo ano e a mesma escola onde eu havia cuidado da turma dos “piolhosos e burros”. Arrisquei esclarecer uma última dúvida: 

“Como era esse professor?” 

“Era mais ou menos da sua altura. Andava sempre vestido de preto e usava sandálias. Tocava violão e ensinava-nos canções bonitas. Tinha o cabelo comprido…”

A descrição feita pelo Paulo ajustava-se, perfeitamente, à pessoa que o seu amigo e professor tinha sido, trinta anos antes – era eu.

Eu sei que a possibilidade de ocorrer algo assim é de um para um milhão. Mas aconteceu. Porque não é por acaso que há acasos.

 

Por: José Pacheco

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