Mirantão, 22 de setembro de 2043
O meu saudoso amigo Rodrigues Brandão compôs “Haicais para receber a Primavera”, celebrando a chegada da Primavera da Educação, consciente de que ainda ia terminando um longo e pesaroso Inverno Educacional.
Era indisfarçável a podridão pedagógica acumulada, ao longo de séculos. O assédio moral e múltiplas ameaças eram sinais evidentes do desespero de áulicos e burocratas. Atento ao descalabro, o amigo Ademar denunciava os habituais disfarces e paliativos, metaforizava o fim de um obsoleto e pérfido sistema de ensinagem.
“Na madrugada do naufrágio do Titanic, o quinteto liderado por Wallace Hartley só parou de tocar trinta minutos antes de o luxuoso navio se afundar. Os músicos sabiam que da sua actuação dependia, em larga medida, o controlo do pânico dos passageiros. Um dos sobreviventes do naufrágio contou mais tarde aos jornais que ao mesmo tempo que as águas tumultuosas do oceano se insinuavam discretamente sobre os mais recônditos escaninhos do Titanic, preparando o golpe fatal, a orquestra ia tocando “músicas muito agradáveis” para distrair os condenados à morte, as cerca de mil e quinhentas pessoas (incluindo os tripulantes) que não teriam lugar nos botes salva-vidas e pereceriam daí a pouco afogadas.
A iminência da tragédia não desviou os músicos do cumprimento das suas obrigações profissionais. Eles tinham de tocar até à morte como sempre tinham tocado, desejavelmente, até que o navio – o mais seguro, inexpugnável e luxuoso dos transatlânticos jamais construídos – batesse no fundo do oceano. A música deveria anestesiar o pânico e o sofrimento dos que iam morrer.
O naufrágio do Titanic, sabe-se hoje, estava desde o berço inscrito no seu patético destino de magnificência. A sua tão apregoada insubmersibilidade não passava de um estúpido e perigoso slogan propagandístico.
O aço com que foi construído, apurou-se muito mais tarde, era de baixíssima qualidade e vários erros grosseiros de conceção, que prenunciavam a catástrofe, tinham sido cometidos pelos projetistas.”
Talvez venha a ter oportunidade de continuar a transcrição do implacável texto do Ademar. Por hoje, limitar-me-ei a partilhar alguns dos haicais do Brandão dedicando-os à minha amiga Mariana, de Mirantão, e à sua equipe de projeto, para lhe dizer que a maldade que sobre o seu projeto se abatia, seria dissipada:
“Canta o sabiá no pé de ipê. / É primavera, / vê!
Amanhece. / O sol do inverno / Espera a primavera.
Sozinha na folha / a palavra “só” / chorava a solidão.”
No dia da chegada da Primavera de vinte e três, recebemos esta mensagem da Mariana:
“Boa tarde! Estamos recebendo ataques gravíssimos na Escola Municipal de Mirantão e gostaríamos de fazer uma denúncia no Ministério de Educação.
Acabei de ser exonerada da direção da escola depois de uma reunião na Câmara dos Vereadores com ofensas a mim, às professoras e a escola, que são gravíssimas. A Janaina e o Ricardo Arantes estão com a gente, aqui na causa.”
A Mariana não estava sozinha. Nesse tempo se dizia “não largar a mão de ninguém”. A Fabi logo comentou:
“Meu Deus! Como pode? As histórias se repetem o tempo todo! É doloroso! Força para ti! E para todos de Mirantão.”
E a Mariana completou:
“O melhor é que nunca mais estaremos sós.”
Pois não. O autoritarismo de gente sem escrúpulos não poderia ficar impune. Enviei um apelo a educadores éticos:
Quem poderá ajudar a Mariana? Como a poderemos ajudar?
Netos queridos, um vasto movimento de solidariedade se formou: “SOMOS TODOS MIRANTÃO”. Dele e do que, entretanto, aconteceu, vos falarei em próximas cartas.
Por: José Pacheco
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