Elvas, 24 de setembro de 2043
A minha amiga Regina fez lembrar que, há setenta anos, o Brasil e o mundo perderam Josué de Castro. Nascido no setembro de 1908, viria a ser sepultado em Paris, no setembro de 1973. Pelo meio ficara uma vida ao serviço dos deserdados. Em “Por um mundo sem fome”, Francisco Menezes assim o descreve:
“O menino mulato cresceu bem próximo aos mangues, na região de mocambos, habitada por retirantes e caranguejos.”
Ficaram célebres os seus trabalhos sobre o problema da fome no mundo e as suas participações em organismos internacionais. Partindo de sua experiência pessoal no Nordeste brasileiro, publicou obras de indispensável leitura: “Geografia da fome”, “Geopolítica da fome”, “Sete palmos de terra e um caixão” e “Homens e caranguejos”.
Nos idos de vinte, três subsistemas sociais careciam de mudança: o subsistema político, que demonstrara total inépcia na gestão de crises humanitárias; o econômico, que não mais poderia manter-se predatório; e o educacional, que estava na base de ambos.
Nesse tempo, conscientes da gravidade da situação social e escolar, educadores éticos delineavam novos rumos para a educação, adotando a proposta de Darcy de integrar três dimensões de projeto: a educação, a saúde e a cultura.
Em quatro anos de desgoverno, a saúde pública passara de precária para trágica. A fome assolava milhares de famílias brasileiras. Uma pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional concluía que 19 milhões de brasileiros passavam fome e mais de metade da população apresentava algum nível de insegurança alimentar. Era deplorável a situação vivida num Brasil, que aprendi a amar e que me atraía para memórias, que, em vão, eu tentara ignorar.
Um sociólogo amigo facultava-me o acesso às teses de doutoramento, que ele havia orientado. Passei longas horas no seu gabinete da faculdade, lendo e relendo, tirando notas, aprendendo. Certo dia, deparei com uma tese sobre a fome, que assolara o meu bairro, durante a ditadura de Salazar.
Enquanto lia a tese, não conseguia conter o riso.
“Por que ris?” – perguntou o meu amigo.
“Porque o que aqui está escrito não corresponde à realidade. E as conclusões estão erradas.”
O meu amigo afirmou a “excelente qualidade” da tese e eu repliquei:
“Este candidato a doutor nunca entrou na comunidade que estudou.”
“Como sabes?” – replicou.
“Porque eu nasci e morei na “Ilha dos Tigres”. Lá, não entrava polícia, nem ambulância, quanto mais alguém que não sabe o que é ter fome!”
Foi grande a surpresa do meu amigo. E perguntou:
“Zé, para saber o que é fome, é preciso passar fome?”
“Não é preciso. Mas… ajuda.”
Saramago, que também conheceu o sabor da fome, assim se pronunciou:
“Não podemos esperar que os governos façam o que não fizeram. Que nós mesmos façamos com que nossa voz seja ouvida, com a mesma ênfase com que, até o momento, temos exigido: o respeito aos direitos humanos.
Tornemo-nos responsáveis por nossas obrigações como cidadãos, sejamos cidadãos, e o mundo talvez possa ficar um pouquinho melhor. Assumamos as responsabilidades que nos cabem.”
Se, à maneira do Ademar, eu quisesse estabelecer um metafórico paralelo com o domínio das ciências da educação, escassos eram aqueles que assumiam um compromisso ético – havia muito teoricismo e escassa produção de teoria, de conhecimento útil.
Assim como não seria preciso passar fome para saber o que era fome, mas passar fome ajudaria a compreendê-la, também uma passagem pelo chão das escolas ajudaria os teoricistas a serem mais humildes, a reconhecerem a dimensão da sua ignorância.
Por: José Pacheco
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