Morro do Estado, 24 de outubro de 2043
Por alguns dias do outubro de há vinte anos, mantive contato epistolar com alguém que eu muito estimava, comentando e formulando perguntas jamais respondidas.
Dizia ao meu querido amigo, que com ele concordava – o depoimento de Chase era extraordinário –, mas discordando do seu entusiasmo.
Parece que a velhice nos devolve alguma serenidade. Serenamente, pedia que me fossem dadas razões para a manutenção de um sistema obsoleto e iníquo, aquele que tinha por dispositivo central a sala de aula de… Chase. Já estava saturado de paliativos assimilados pelo “sistema”, digeridos e servidos como se de inovação se tratasse.
À distância de duas décadas, já consigo comentar sem quase deixar transparecer a irritação, apenas com resquícios de indignação. Naquele tempo, eu manifestava perplexidade perante o obsceno silêncio dos meus companheiros das ciências da educação. Não conseguia digerir omissões, discurso de acariciamento do ego dos professores, nem processos de naturalização – a educação familiar, a educação social e a escolar eram corresponsáveis pelo caos.
Por inverosímil que vos possa parecer, queridos netos, as instâncias de poder eram surdas a argumentos de natureza científica. E a escola da aula reproduzia um modelo social gerador de exclusão, “naturais” solidões, o aumento dos casos de automutilação e o crescimento exponencial do suicídio de jovens.
Pela sua natureza, a escola da sala de aula contribuía para agudizar os efeitos de uma globalização neoliberal, que remetia o ser humano para bolhas sociais feitas de ostentação, miséria e solidão. E eu não conseguia entender a exaltação do meu amigo e o porquê dos encómios.
“Meu Deus! Esta mulher brilhante assistiu Columbine sabendo que TODA VIOLÊNCIA COMEÇA COM DESCONEXÃO. Toda a violência exterior começa como solidão interior. Ela viu aquela tragédia SABENDO que as crianças que não estão a ser notadas acabarão por recorrer a serem notadas por qualquer meio necessário.
E o que esta matemática aprendeu, ao utilizar este sistema, é algo que ela realmente já sabia que tudo – até o amor, até mesmo o pertencimento – tem um padrão. E ela encontra esses padrões através dessas listas – ela quebra os códigos de desconexão. E, então, ela sente crianças solitárias e a ajuda que eles precisam. É matemática para ela. Tudo é amor – até matemática. Incrível!
O professor de Chase aposenta-se este ano – depois de décadas a salvar vidas. Que maneira de passar uma vida: procurando padrões de amor e solidão. A intervir todos os dias e a alterar a trajetória do nosso mundo. Vocês são os detetives de desconexão e a ÚNICA esperança que temos para um mundo melhor.
O que fazes nessas salas de aula, quando ninguém está a ver, é a nossa melhor esperança (…) a esperança de salvar mais crianças. O que a professora de Chase está a fazer, quando se senta na sua sala vazia a estudar aquelas listas escritas com mãos tremidas, é SALVAR VIDAS. Estou convencido disso. Ela está salvando vidas.”
Pura ilusão! Talvez essa professora conseguisse salvar vidas ao seu alcance. Porém, ao não questionar a origem das violências, contrariava aquilo que, nos idos de vinte, a minha amiga Helena dissera:
“Precisamos de uma estrutura que garanta a interação pessoal educador-estudante, a experiência coletiva da construção do bem comum, do diálogo, da convivência, do cuidado com o outro, da diversidade.
Se os prédios e a velha estrutura chamada enturmação não servem para isso, utilizemos todos os recursos disponíveis, inclusive os tecnológicos, que, agora, os professores conhecem”.
Por: José Pacheco
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