Campo de São Bento, 2 de novembro de 2043
Vai para uns trinta anos, no velhinho e abandonado facebook, o meu amigo José transcrevia palavras de outro amigo (o Nóvoa), acompanhando o texto com o desenho, que junto a esta cartinha, da autoria da minha saudosa amiga Angelina (como vedes, o vosso avô era rico de amigos).
“Durante muito tempo as reformas sonharam que podiam mudar os “sistemas educativos”, depois preocuparam-se com os “currículos”, agora tendem a centrar-se nas “práticas pedagógicas”.
Uma leitura atenta permite-nos identificar as razões do fracasso das reformas empreendidas em Portugal nas décadas de oitenta e de noventa. Apesar das suas diferenças, acabaram por revelar as mesmas dificuldades: por um lado, desgastaram-se em intermináveis arranjos de currículos e de programas, esquecendo os modos de organização do trabalho escolar; por outro lado, não conseguiram eleger a escola como o espaço de “negociação da mudança”, pois tal teria obrigado a reforçar as competências e os poderes locais.
O debate, que envolveu milhares de professores e de outros “atores sociais”, não contribuiu para construir uma inteligência coletiva com base em responsabilidades exercidas no espaço local da escola.”
O amigo José completava um pedaço do prefácio do Nóvoa para o livro do Philippe “Aprender a Negociar a Mudança em Educação” com um eufemístico comentário:
“Parece que aprendemos pouco.”
Eu diria que quase nada tínhamos aprendido. O ministério insistia em reformar reformas, investindo em inflexíveis “gestões flexíveis” e cursos de falsas “comunidades de aprendizagem”. Os professores e as escolas viviam sob a ameaça de uma praga – a dos “consultores”. Na cartinha de amanhã, pretendo falar-vos das “cartas educativas”. Por agora, vos deixarei com uma síntese descritiva de uma praga, que custou fortunas ao erário público, que enriqueceu muita gente, mercantilizou a Escola Pública e muito prejuízo lhe causou.
Os “consultores” eram contratados por autarquias, a troco de pagamento de inúteis “relatórios”, “projetos”, “cartas”, e os havia formados em marketing, geografia, psicologia, turismo, inglês, matemática e em outras áreas. Nada sabiam da Educação necessária, mas, do alto dos seus doutoramentos, ditavam leis. Não sendo merecedores de mais extenso arengar, vos remeterei para uma metafórica caracterização de um “consultor”.
Estava o pastor apascentando o seu rebanho, num verde pasto dos cafundós das Gerais e eis que um carro para na estrada. Dele sai um sujeito com paletó de executivo e dele se aproxima.
“Bom dia, doutor! – saudou o pastor – Uai! O que cê faz nesta biboca de Deus? Aqui só passa cata-jeca.”
“Venho fazer-lhe uma proposta.”
“Bão, mar bão mermo!”
“Se eu adivinhar quantos animais você tem no seu rebanho, você me dá uma ovelha?”
“Combinado. Mas olhe que é difisdemais…”
Assistindo à instalação de antena parabólica e computador, disse o pastor.
“Uai! Cê besta, trem?”
“É tecnologia avançada!”
Feitos os cálculos, o sujeito informou que o rebanho tinha duzentos e trinta animais.
“Certo!” – confirmou o pastor – “Cê pode pegar uma ovelha.”
Quando o visitante se preparava para partir, o pastor assim falou:
“Eu sei o que cê mexe com que.”
“Você disse que sabe qual é o meu trabalho? Foi isso?
“Sim. E, se eu acertar na sua profissão, cê devolve-me o animal?”
“Claro! Mas não vai conseguir. É uma profissão muito nova!”
“Eu acho que cê é consultor.”
“Certo. Mas, como soube que eu sou consultor?”
“Porque cê chegou e eu não o tinha chamado. Disse-me aquilo que eu já sabia. E, entre tantos animais, levou-me… o cachorro”.
Por: José Pacheco
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