Vila das Aves, 6 de janeiro de 2044
Nise da Silveira terá sido um dos símbolos maiores de uma lealdade entendida como fidelidade a princípios. Nela reconheço o seu exemplo e inspiração. A sua figura emerge de um tempo conturbado e no contexto de uma sociedade alienada e alienante, uma civilização desviada para um abismo de si mesma.
Nise sofreu a repressão, a discriminação, mas manteve-se leal a si mesma e àqueles que, nos asilos de então, recebiam o seu eletrochoque diário – quando o médico-chefe lhe ordenou que executasse a eletroconvulsoterapia, Nise recusou apertar o botão do eletrochoque.
Com esse ousado gesto, mudou de forma definitiva o tratamento psiquiátrico que se fazia no Brasil. E precipitou a sua prisão (ainda que, como bem disse Clarice, prisão seria seguir um destino que não fosse o próprio). Assim foi que outro escritor, Graciliano Ramos, companheiro de cárcere de Nise, a ela se referiu:
“A sua presença benfazeja afugentava lembranças ruins, “a pobre moça esquecia os próprios males e ocupava-se dos meus”.
Lealdade a princípios! Lealdade aos seus “loucos”, enfrentando a loucura que havia fora de asilo. O seu exemplo permaneceu vivo ^na vida e na obra de educadores leais a princípios, no Advento de uma nova Educação.
Nos idos de vinte, festejava-se o nascimento de um Menino-Deus, que ninguém sabia quando nascera. A festividade fora oficializada como Natale Domini, cristianizando festas pagãs do solstício de inverno romano. Era invocada a peregrinação do Rei Gaspar, em demanda do Rei dos Reis. No conto “Os três Reis do Oriente”, a Sophia escrevera:
“Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:
Por que não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza da Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?
Gaspar respondeu:
Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.”
Gaspar se sabia acompanhado do seu deus, como sabiam estarem acompanhados aqueles que, nos idos de vinte, abandonaram a solidão da sala de aula e ousaram conceber novos modos de aprender. Aproximava-se um tempo de mudança profetizada por Friedberg:
“Jjá não há lugar para uma noção como «a resistência à mudança», ou, pelo menos, dever-se-ia utilizá-la com muito mais circunspecção do que habitualmente fazemos.”
Num tempo em que a burocracia reinante protegia uma mediocridade impune, em boa hora, se organizou um debate em torno da necessidade de mudança. Pela terceira vez, um jovem velho com pretensões de vedeta pegou no micro, para contestar as palavras do sábio João. Pela terceira vez, ele repetiu a frase:
“Nós temos direito à resistência à mudança. Os professores que não quiserem mudar estão no seu direito. O senhor já ouviu falar do conceito “resistência à mudança”?
O João fizera doutoramento em torno desse conceito e o da “autonomia relativa”. Era um profundo conhecedor dessa matéria e já perdera a paciência:
“Olhe, meu amigo! Eu sei muito bem o que é a “resistência à mudança”. Mas, no seu caso, não se trata de “resistência à mudança”, mas de preguiça mental. Porque você nem fala, nem sai do micro…”
Uma gargalhada geral emudeceu o candidato a protagonista do evento.
Netos queridos, eu não consguia entender que, tendo a Ponte mostrado a possibilidade de mudança, ainda houvesse quem a recusasse.
Por que seria? Sabereis dizer-me?
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