Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDLXXV

Borba, 10 de janeiro de 2044.

Perguntais-me por que troquei o calor tropical por um rigoroso inverno europeu. E vos digo que está a ser bem difícil o frio do Norte. Por isso, depois dos encontros realizados nas escolas de Entre Douro e Minho, acompanhados pelo bacalhau à moda da Julinha e de uns tintos de aquecer o corpo até aos ossos, o vosso avô veio até ao Alentejo.

Hoje, a Vovó Paula faz setenta e oito anos. Sempre que celebro este aniversário, me recordo do marido da minha irmã, o Paulo. E me revejo personagem da sua história de vida.

Preocupado, o Paulo pediu-me conselho:

“Sinceramente, qual será a melhor escola para matricular a minha filha na “primeira classe? Faça de conta que a minha filha Catarina era sua filha! Que me diz?”

Lacónica e sinceramente, respondi:

“Há bons professores em todas as escolas.”

Mas o Paulo não desarmou:

“Não é bem assim. Na minha primeira classe, eu tive dois professores. Um tratou-me tão bem que eu nunca mais o esqueci. A outra foi uma cabra que me fez odiar tanto a escola, que me raspei dali para fora

“O que foi que ela fez?” – retorqui.

“Eu era muito pobre e a professora fazia distinção. Pôs-me ao fundo da sala, ao lado dos meninos pobres e da fila dos burros.”

“E o outro professor também era assim?”

“Esse era muito diferente. Tratava-nos a todos com meiguice e paciência. Nunca nos bateu. E nós até éramos para aí mais de trinta e difíceis de aturar. Se eu hoje sou alguma coisa devo-o a ele. Ainda hoje me lembro dele, quando tenho de decidir da minha vida.”

“O que foi feito desse professor?”

“A meio da primeira classe, ele chamou-nos, um a um, ainda me estou a lembrar quando chegou a minha vez. Abaixou-se, pôs-se da minha altura e disse-me: Paulinho, eu vou ter de ir embora, não quero, mas tenho de ir para a guerra.

Até me deu vontade de chorar, mas disse que sim co’a cabeça, que eu até sabia que o Eduardo, lá da minha rua, tinha morrido na guerra de Angola.”

“Em que escola andaste? Em que ano entraste na escola? – perguntei

O Paulo respondeu. E era o mesmo ano e a mesma escola onde eu tinha começado a minha carreira de professor.

Ainda arrisquei esclarecer uma última dúvida:

“E só havia uma “primeira classe” na tua escola?”

O Paulo respondeu negativamente, mas acrescentou:

“As outras três “primeiras classes” tinham professoras, só a nossa é que tinha um professor.”

“E como era esse professor?

“Era mais ou menos da sua altura. Andava sempre vestido de preto e usava sandálias. Tocava violão e ensinava-nos canções bonitas. Tinha o cabelo comprido e uns óculos à John Lennon.”

A descrição feita pelo Paulo ajustava-se, perfeitamente, à pessoa que o seu amigo professor tinha sido, trinta anos antes.

Netos queridos, o professor desta estória era eu. O Paulo da estória foi meu cunhado. Faleceu muito novo, porque a vida lhe foi madastra.

Em meados do século passado, o João Cabral falava dos que morrem sem nunca terem vivido. Pois ficai sabendo que, decorrido quase um século, ainda se morria no Brasil “de morte igual, da mesma Morte Severina: a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte”.

Releio o desabafo do João:

Escolas são usinas, que engolem gente e vomitam bagaço”.

A Escola e o planeta Terra estavam doentes. E doentes continuariam, enquanto a nossa maneira de viver fosse reproduzida nos valores que muitas escolas insistiam em transmitir. Urgia mudar. E já Confúcio dissera:

“Transportai um pedaço de terra todos os dias e fareis uma montanha.”

Há cerca de vinte anos, prudentemente, gradualmente, educadores éticos ergueram a “montanha”. Por que razão ainda havia quem dissesse não ser oportuno fazê-lo?

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