Estremoz, 11 de janeiro de 2043
Em 1996, quando o Ministério da Educação de Portugal reconheceu a Escola da Ponte como a escola mais inovadora do nosso país, tive o cuidado de avisar que a inovação mataria a inovação, se não fosse assegurada a estabilidade da equipe de projeto, pelo menos, por três anos – as constantes entradas e saídas de professores eram fator de desagregação – e que seria indispensável celebrar um contrato de autonomia.
Volvidos oito longos anos, o contrato foi celebrado. A Escola da Ponte poderia acolher aqueles educadores que optassem por cumprir o seu projeto – em concurso universal, com rigorosos parâmetros e critérios de seleção. À margem da lei, ardis burocráticos retiraram à Ponte essa competência.
Quando fiz parte do Conselho Nacional de Educação, coube-me redigir um “parecer” sobre uma reforma do currículo. No documento, fiz lembrar a necessidade de formalizar contratos de autonomia, sem os quais as minhas “recomendações” seriam inúteis.
Vinte anos depois, quando, no Ministério da Educação do Brasil, integrei o Grupo de Trabalho da Criatividade e Inovação, insisti na necessidade de dotar de autonomia os projetos considerados com potencial inovador. Foi dada visibilidade social a 178 projetos. Decorrida meia dúzia de anos, poucos restavam em atividade. Alguns restavam, mas desvirtuados, “cristalizados”. Os restantes tinham sido destruídos.
Naquele tempo, já tinham sido inventados os “contra-turnos”, as “atividades de enriquecimento curricular” e de “apoio às famílias”, e o “tempo integral”. Eram, respetivamente, formas de desculpabilização curricular, doses duplas de tédio e trabalho de baby sitter, e um tempo integral confundido com educação integral.
Em 2024, quando se pensava ter-se extinguido o espírito fundador desses projetos, muitos deles renasceram. Reagindo à insanidade do “sistema de ensinagem”, uma rede de comunidades emergiu do pântano em que a educação se encontrava.
Pais e professores conscientes dos perniciosos efeitos do rame-rame das salas de aula, não permitiram que os jovens continuassem, por demasiado tempo, “aglomerados” dentro de prédios a que chamavam “escolas”. Um sistema de ensinagem hierárquico, autoritário, imoral e corrupto viria a ser reconstituído como sistema de aprendizagem caraterizadoa pela equidade, democraticidade e ética.
Eu poderia acrescentar a igualdade, a honestidade, a coerência e outros valores identificados nesses projetos, mas opto por falar de lealdade a princípios.
Diz-nos o dicionário que lealdade é qualidade, ação ou procedimento de quem é leal, honesto, fiel a compromissos. E a lealdade, como qualquer outro valor, no exercício da lealdade se aprende.
Se os jovens estavam sempre atentos ao exemplo de vida dos adultos e aos valores que eles traduziam, se, através do exemplo, não fossemos leais, abriríamos espaço para desenvolvimento de contra-valores.
Vezes sem conta, repeti o pedagógico (ou antropagógico) estribilho:
“Escolas são pessoas. As pessoas são os seus valores.
Explícita ou implicitamente, os projetos humanos refletiam valores. Na teoria como na prática, se requeria lealdade a valores. Em que vida estarímos a educar os nossos jovens? Numa vida coerente com valores, na lealdade a princípios? Que virtudes eram ensinadas e aprendidas pelos nossos jovens?
Se um dos valores proclamados pelos professores era o da autonomia e se o professor em sala de aula não era autónomo, se os professores não ensinavam o que falavam, mas transmitiam aquilo que eram, por que continuavam a “dar aula”?
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