Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCIV

Doroteia, 30 de janeiro de 2044

Na cidade de Doroteia, o cameleiro que me conduziu até ali disse: “Cheguei aqui na minha juventude. Antes disso, não conhecia nada além do deserto e das trilhas das caravanas. Naquela manhã em Doroteia senti que não havia bem que não pudesse esperar da vida. Nos anos seguintes meus olhos voltaram a contemplar as extensões do deserto e as trilhas das caravanas; mas agora sei que esta é apenas uma das muitas estradas que naquela manhã se abriam para mim em Doroteia”.

Partindo da releitura de Calvino, ofereço-vos um belo naco de prosa da Marguerite Yourcenar (“Les Eux Ouverts”), partilho aquilo que mão amiga me fez chegar. 

“Condeno a ignorância que reina neste momento nas democracias e nos regimes totalitários. Essa ignorância é tão forte, muitas vezes tão total, que seria dito desejado pelo sistema, se não pelo regime. Muitas vezes me perguntei como poderia ser a educação de uma criança.

Acho que seria necessário estudos básicos, muito simples, onde a criança aprendesse que existe no universo, num planeta cujos recursos terá que gerir mais tarde, que depende do ar, da água, de todos os seres vivos, e que o menor erro ou a menor violência arrisca destruir tudo.

Ele iria aprender que os homens se mataram uns aos outros em guerras que só produziram mais guerras, e que cada país organiza sua história, falsamente, para esmagar seu orgulho.

Ele seria ensinado o suficiente do passado para fazê-lo sentir-se ligado aos homens que vieram antes dele, para admirá-los onde merecem estar, sem se fazerem ídolos, nem do presente ou de um futuro hipotético.

Nós tentaríamos familiarizá-lo tanto com livros como coisas; ele saberia os nomes das plantas, conheceria os animais sem se entregar às hediondas vivissecções impostas às crianças e adolescentes muito jovens sob o pretexto da biologia.

Ele aprenderia a dar primeiros socorros aos feridos; sua educação sexual incluiria a presença de um parto, sua educação mental a visão dos doentes e dos mortos.

Eles também lhe dariam as simples noções de moralidade sem as quais a vida na sociedade é impossível, instrução que as escolas primárias e secundárias já não se atrevem a dar neste país.

Em termos de religião, nenhuma prática ou dogma lhe seriam impostas, mas seria-lhe dito algo de todas as grandes religiões do mundo, e especialmente do país onde se encontra, para despertar o respeito nele e destruir antecipadamente certos preconceitos odiosos.

Ele seria ensinado a amar o trabalho quando o trabalho é útil, e a não cair na hipocrisia da publicidade, começando por aquele que lhe vende doces mais ou menos irritados, preparando-o para futuras cáries e diabetes.

Há definitivamente uma maneira de falar com as crianças sobre coisas realmente importantes mais cedo do que nós.”

Este texto foi escrito há mais de sessenta anos. Marguerite nos falava daquilo a que os “especialistas em educação” chamam “aprendizagens essenciais”, sobretudo do aprender a ser. Mas, os “especialistas” dos idos de vinte continuavam a considerar como essencial aprender mesóclises, raízes quadradas, dígrafos, produções da Senegâmbia e piroclásticas…

Nesse tempo, depois de meio século a porfiar por melhorar o sistema, compreendi que ele não tinha melhoria possível, que precisávamos refundá-lo. E que seria precisa muita paciência para o refundar!

O texto da Marguerite dispensa comentário. Por isso, vos deixo com Neruda no lugar da pergunta do dia:

“Se cada dia cai dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência.”

 

Por: José Pacheco

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