Berenice, 31 de janeiro de 2044
Calvino, de novo, a desocultar cidades feitas de ignominiosa injustiça:
“Em vez de falar de Berenice, cidade injusta, que coroa com tríglifos ábacos métopes as engrenagens de suas máquinas de triturar carne (os funcionários responsáveis pela limpeza, quando levantam a cabeça acima dos balaústres e contemplam os átrios, as escadarias, os pronaus, sentem-se ainda mais enclausurados e baixos de estatura), eu deveria falar da Berenice oculta, a cidade dos justos
em vez de representar as piscinas perfumadas das termas em cujas bordas se estendem os injustos de Berenice enquanto tecem as suas intrigas com redonda eloquência e observam com olhar dominador as carnes redondas das odaliscas que se banham, deveria falar de como os justos, sempre prudentes em evitar as delações dos sicofantas e as armadilhas dos janízaros”.
Não era a primeira vez, nem seria a última, que um poder público prepotente praticava injustiças. A “funcionarização” dos professores era causa de vis afrontas praticadas por diretores, secretários, ministros.
A Céu Roldão descrevia a insana situação:
“Vive-se, atualmente, um momento particularmente crítico, em que se joga a afirmação ou esbatimento da profissionalidade docente, por força de fatores como a imobilidade persistente dos dispositivos organizacionais e curriculares da escola geradora do seu anacronismo ante as realidades atuais, a pressão das administrações e dos poderes económicos para uma funcionarização acrescida dos docentes, todavia também largamente alimentada pelos próprios professores, prisioneiros de uma cultura que se instalou ao longo deste processo e que contradiz a alegada reivindicação – no discurso político e no discurso dos próprios docentes – de uma maior autonomia e decisão, desejavelmente associadas a um reforço de profissionalidade.”
Nos idos de vinte, por não se deixar “funcionarizar”, a Fabi foi alvo de um kafkiano processo disciplinar. Mas, o que constava dos autos, quais as irregularidades cometidas pela “indiciada”?
Consta que a Fabi teria concedido uma entrevista a um programa de rádio, sem que, previamente, tivesse comunicado à Diretoria que a iria fazer. A “indiciada” infringira uma regra semelhante àquela que professáurios de antanho impunham na sua sala de aula. A Fabi deveria continuar a pedir para falar, ou “para ir lá fora, fazer xixi”.
Talvez, até, devesse apresentar (previamente!) para análise de censura prévia, aquilo que iria dizer no programa em causa. Seria ridículo, se não fosse grave exibição de autoritarismo, em tempo de (ainda que precária) democracia. Mas essa cretina atitude da Diretoria tinha uma absurda “explicação” – a Diretoria evocava uma lei aprovada pela Assembleia de São Paulo… a Lei nº 10.261/68. Lestes bem, queridos netos: uma lei de 1968!
O “Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado” , que a Diretoria impunha aos professores, para os “funcionarizar” tresandava a ditadura.
Trinta anos após a publicação dessa lei, uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) tinha sido publicada. Mais de meio século decorrido, a ditadura tinha acabado e a Fabi tentava cumprir a Lei aprovada em 1996 e que estipulava que as escolas e professores fossem autônomos. Porém, os burocratas serviam-se de um palimpsesto, para impedir o cumprimento da lei, para vigiar e punir.
Naquele tempo, diretorias, secretarias e quejandos, impunemente, perseguiam educadores éticos e destruíam os seus projetos. E eu perguntava:
Até quando iremos permitir que atos infames sejam praticados?
Por: José Pacheco
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