Saquarema, 1 de fevereiro de 2044
“É possível inferir uma imagem da futura Berenice, que estará mais próxima do conhecimento da verdade do que qualquer notícia sobre o atual estado da cidade. Contanto que se tenha em mente o que estou para dizer: na origem da cidade dos justos está oculta, por sua vez, uma semente maligna, fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represália (…) o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada.”
Um Calvino profético coloca Marco Polo a descrever uma corrupção, de que Vieira já falara, no século XVII.
Quando voltei ao sótão da casa velha, para jogar fora o enferrujado baú das velharias, achei dentro dele um embrulho. Retiradas as teias de aranha, sacudido o pó, ali estava um molhinho de cartas. A primeira das cartas era dirigida ao Padre Vieira e abordava um fenômeno desse tempo, felizmente já erradicado: a corrupção.
“Qual a causa da corrupção de uma terra? Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem do que fazer o que dizem. O que se há de fazer ao sal que não salga e à terra que não se deixa salgar?”
A perseguição movida contra a Fabi era um caso exemplar de corrupção moral. Essa extraordinária educadora havia criado uma equipe na escola de que era diretora, e desenvolvia um belo projeto, tendo-se esquecido de que estava sujeita ao indigno “dever de obediência hierárquica”.
Era um tempo em que diretorias, secretarias, ministérios impunham às escolas a prática de um modelo de ensino que não lograva garantir a todos o direito à educação. Professores “funcionários” sabiam que, ensinando daquele modo, condenariam a maioria dos alunos à ignorância (como o IDEB comprovava), mas fingiam que ensinavam. A corrupção grassava na administração pública e nas escolas, uma corrupção moral origem de máfias do transporte e da merenda do livro didáticos e dos sistemas de ensino, da mercantilização da Escola Pública, a corrupção moral mãe de todas as corrupções.
O dicionário nos dizia que corrupção significava, também, “deterioração, depravação de hábitos e costumes, devassidão”. O sistema de ensino se deteriorara a tal ponto, que sobrevivia assente numa sutil inversão de valores. Continuava apodrecendo, exalando miasmas de decomposição, como o comportamento de diretorias persecutórias, que agiam sem pudor de fraudar.
Não havia parâmetros, regras, limites para o autoritarismo e a corrupção moral. Tendíamos a regredir à barbárie. Esgotava-se a energia vital do lado saudável de um sistema, que entrara num processo de entropia. E a Fabi continuava exposta à maldade humana, só porque queria melhorar a vida das crianças e dos professores.
A corrupção moral já levara à tentativa de colocar câmaras de vídeo dentro de salas de aula, a que políticos ignorantes entrassem em escolas para intimidar professores, e a tentativas de censura esboçadas por burocratas da educação ditatoriais. Os diretores permaneciam cativos de um indigno “dever de obediência hierárquica”, que dava aso a nefastas atitudes da administração educacional. Burocratas conscientes de impunidade não hesitavam em perpetrar atos administrativos discricionários. E, quando alguém desobedecia a normas sem nexo, arriscava ser admoestado e até mesmo vítima de perseguição.
Consentiríamos que a Fabi fosse punida por corruptos? Cadê a solidariedade em ato?
Por: José Pacheco
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