Zaíra, 3 de fevereiro de 2044
“Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: o salto do adúltero que foge de madrugada; a história do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha.”
Volto a citar Calvino, para vos falar de uma das práticas escolares origem de corrupção moral. Os professores não ensinavam o que diziam, transmitiam aquilo que eram. E a cegueira moral de a maioria padecia não lhes permitia ver, por exemplo, que a aplicação de testes era veículo de transmissão de valores.
Iria acontecer uma “prova nacional”. Mostrei aos meus alunos o que era um teste. Perguntaram-me por que teriam de o fazer em cinquenta minutos. Não soube responder. Aliás, ninguém sabia.
Quando terminei a explicação daquilo a que iriam ser submetidos – uma prova de aferição nacional – um aluno quis saber por que o professor estava ali, especado, porque não ia fazer algo útil, em outro lugar.
Um jovem oriundo de uma escola, onde era hábito haver professores a vigiar os alunos, enquanto faziam as provas, esclareceu:
O professor fica na sala, para não deixar que os alunos possam copiar (colar).
Uma criança perguntou:
O que é colar?
Esta pergunta me perturbou. Sempre me senti individualmente responsável pelos atos do meu coletivo, do meu grupo profissional. Aquela pergunta me incomodou profundamente. O professor que ficava de vigia considerava que os seus alunos eram seres potencialmente desonestos – se pudessem colar, colariam.
Se o professor não ensinava aquilo que dizia, mas transmitia aquilo que era, o professor-polícia transmitia valores: desconfiança, mentira, falsidade… corrupção.
O não verbal falava mais alto que o verbal! O professor, que ficava de vigia, deseducava.
A Mirinha saiu da Ponte, no final do quarto ano. Frequentava o oitavo ano, numa escola onde se fazia teste. Por uma questão de princípio – porque a aprendizagem de uma atitude se tinha processado na Ponte – não incorria naquilo que começara a classificar de “deslealdade”. Até que, um dia, chegou a casa visivelmente incomodada, e a mãe quis saber o porquê da arrelia.
Ao cabo de algumas insistências, a Mirinha lá desembuchou:
Hoje, houve prova, A meio, a professora foi chamada ao telefone, acho eu. E quando voltou, percebeu que muita gente tinha colado. Vai daí, disse que nos ia tirar dez pontos a todas.
A todas? – perguntou a mãe, surpreendida.
Sim, a todas! – confirmou a Mirinha.
Não me digas que tu também… – insistiu a incrédula progenitora.
Não! É claro que não colei! Fui a única que não colou! – retorquiu perentória a jovem.
E, então? Não percebo! Não sabias dizer à professora? – devolveu-lhe a mãe.
Ó mãe, tu achas que a professora iria acreditar em mim?
Alguns anos mais tarde, o vosso avô teve de fazer um teste… na universidade.
Entrei na sala da prova. As primeiras filas estavam vazias. Os alunos estavam no fundo da sala. À entrada, um amontoado de malas de senhora, pastas, cadernos…
Sentei-me na primeira fila. A vigilante ordenou-me que colocasse a minha pasta junto das restantes, na entrada da sala. Recusei cumprir a ordem. Ameaçou-me de não permitir que eu fizesse o teste, se não lhe obedecesse. Desobedeci. Sem perder a dignidade, sem permitir que duvidassem da minha honestidade. Porque eu era educador.
Se a educação acontece pelo exemplo, por que razão os professores continuaram a fazer o papel de polícias?
Por: José Pacheco
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