Rio Bonito, 27 de fevereiro de 2044
O discurso da política educacional dos idos de vinte estava eivado de valores da modernidade, dos valores dominantes dos três períodos da trajetória da modernidade: a liberdade, a igualdade e a autonomia. Mas, tal como transparecia no discurso, o conceito de modernidade sacralizava valores e direitos, mas era inviabilizado a sua operacionalização – na prática.
A essência do homem é, essencialmente, o conjunto de relações sociais. A opção pela reelaboração pessoal e profissional assumida pela equipa do projeto Fazer a Ponte constituiu-se em instância de mediação entre singulares. O professor que participava do contacto direto e permanente com outros ficava outro e, transformando-se, disso adquiria consciência.
O requisito de respeito pela autonomia do formando e pela autonomia do círculo de estudos estava intimamente ligado ao princípio da responsabilização a que essa modalidade de formação apelava. Dada a sua organização, o círculo foi sempre um verdadeiro núcleo de democracia participativa, onde a responsabilidade era responsabilidade de todos.
Três valores fundamentais norteavam a reelaboração cultural nos círculos: o mutualismo (cooperação, solidariedade e interajuda, obstáculos à autonomia isolacionista e competitiva), autonomia crítica e transformadora (criatividade, senso crítico e responsabilidade, que conferiam ao indivíduo a possibilidade de existir com os outros como pessoa livre e consciente) e democraticidade (pluralismo, participação social e assunção de cidadania, que definiam o homem como interveniente e confirmavam a transformação da substância e das estruturas da comunicação).
O projeto-círculo implicava autoria de um grupo, que, desde o início, detinha a pilotagem das informações, das regras de funcionamento, do domínio de situações particulares com que se pudesse deparar. A procura de sentido pela ação tornava pertinente o esforço desenvolvido em comum. E a procura de sentido para a ação outorgava ao projeto uma autonomia de novo tipo.
Escolas são pessoas e as pessoas são os seus valores. Ganharia sentido, pois, considerar as escolas como espaços coletivos de criação de novas identidades, a existência de sujeitos coletivos capazes de aprofundar propostas democratizantes. Boaventura dizia não fazer sentido continuar à espera de que o projeto de modernidade se cumprisse naquilo que, até ao final de século, não se cumprira. A emergência de grupos informais confirmava uma situação cultural de “celebração afirmativa” característica da pós-modernidade.
A questão que se colocava, tal como a equacionou Boaventura, era a de saber “se [em Educação] poderíamos pensar o pós-modernismo numa sociedade semiperiférica [referindo-se a Portugal]. Mas, sobretudo, se poderíamos pensar e agir pós-modernamente. Os constrangimentos eram inúmeros, a começar dentro de nós (as pessoas) e a acabar nas contradições do sistema.
Talvez fizesse sentido reorganizar grupos de professores, que questionassem a primazia do autoritarismo do Estado, que tendiam a legitimá-lo como agente de modernização. Essa crença assentava no facto de que, nos espaços intersticiais das reformas educacionais, serem detetadas fragilidades na prática legislativa e nas práticas sociais, onde o Estado não ultrapassava o domínio da intencionalidade.
A sociedade portuguesa teria de cumprir algumas promessas da modernidade, mas à revelia da teoria da modernização. Na Ponte, com intuição e amorosidade, ajudamos a cumprir essas e outras promessas.
Por: José Pacheco
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