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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCII

Vitória da Conquista, 28 de janeiro de 2044

Abalamos de Belo Horizonte para Vitória da Conquista, ao encontro do amigo António. Na bagagem, a expectativa de ajudar a compor uma ARCA do Sul da Bahia e alguns textos dispersos recuperados do caos em que o meu velho computador estava imerso. 

Eram apontamentos marginais de páginas relidas, há mais de meio século, misturados com pedaços de mensagens da Internet de há vinte anos. Sem preocupação de uma sequência lógica, aqui vo-los deixo.

O primeiro me chegou pelos idos de oitenta, oferta do amigo Miguel:

“A escola é o lugar onde deveríamos aprender a ser nós próprios e a respeitar todos os outros. Estar na escola, viver a escola deverá ser o caminho para chegar a conhecer, a amar e a desenvolver a nossa pessoa e, ao mesmo tempo, a ter em conta que há outras que merecem o nosso respeito, a nossa ajuda e o nosso afeto.

Quando falo de diversidade, não me refiro só aos alunos, há diferenças que devemos respeitar nos professores e em todos os que trabalham na escola.” 

E continuava citando Steiner – referência maior da Vovó Ludi – que dizia ser a relação professor-aluno “uma alegoria do amor desinteressado.”

Quando eram colocados obstáculos à expressão concreta da máxima steineriana, Crozier ensaiava uma ou outra explicação:

“Identifico três problemas fundamentais. O primeiro releva da psicologia. O segundo tem a ver como relacional. O terceiro inscreve-se no campo dos saberes, onde a escola privilegia mais os conhecimentos do que o saber-fazer.

No plano psicológico, num mundo caracterizado pela liberdade infinita das escolhas possíveis, choca-me a incapacidade de as crianças escolherem. Os pequenos permanecem marcados por uma educação “dominação/revolta”. O mestre fala, o aluno escuta, não podendo tomar a palavra a não ser nos modos eruptivo ou revoltado.

A escola é o reino da submissão e da não-escolha. Para além disso, é terrivelmente ansiogénea, uma vez que toda a marcha atrás é difícil.

Que se entende por problema “relacional”? A necessidade de uma abertura, de uma disposição de espírito que não existe. Os trabalhos de amanhã lhe atribuirão uma grande importância. Um esforço considerável deve ser empreendido para dar às crianças o gosto de se dirigirem aos outros e estabelecerem o laço social.

E chegamos à terceira dificuldade: a questão dos conteúdos e dos saberes.
Há alguns anos fui convidado por Luc Ferry para refletir sobre os programas escolares. Devíamos aligeirá-los e acabamos por sobrecarregá-los. Que fazer, então?

É preciso dar aos professores instrumentos de reflexão e deixá-los trabalhar sobre os problemas e os constrangimentos que se lhes colocam. Querem fazer-nos acreditar que na educação nacional apenas o ministro pensa. As mudanças não se decretam.”

A escola dos idos de vinte detinha importante função social, e o desenvolvimento de competências sociais deveria andar a par do compromisso com a construção de relações solidárias, humanizadoras. Mas, vai sendo tempo de concluir esta “manta de retalhos”, que espero venha a ser objeto da vossa reflexão. Fá-lo-ei com um recado do Paulo: 

“É preciso contrariar o apagamento das memórias, das razões e das convicções, do direito de resposta à liberalização da infelicidade e à globalização da rapacidade.”

A que junto algumas perguntas deixadas pelo Miguel:

“Deveremos sentir-nos como somos, ou encaixarmo-nos numa engrenagem de rotinas despersonalizadoras? A obedecer de forma aborrecida àquele que prescreve, nas palavras de Helmutt Becker, a “escola administrada”, ou a recriar o conhecimento e a convivência?”

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXCI

Betim, 27 de janeiro de 2044

Quando criança, eu inquiria o porquê das coisas e escutava a inevitável resposta (quando havia resposta…): 

“Um dia, hás de perceber por que razão aprendes aquilo que eu te estou a ensinar.”

Septuagenário, continuava sem saber quando chegaria esse dia, e sem perceber o porquê de muitas coisas com as quais “me prepararam para a vida”.

Décadas a fio, resisti à tentação de desistir de perguntar, insistindo na busca de “explicação” para a monstruosa manutenção do modelo prussiano de escola. Percorri meio mundo, até que vencido pelo cansaço, decidi suspender a andarilhagem, a retirar-me de cena, sem que tivesse encontrado “respostas” para as perguntas que fazia, pois ninguém respondia.

Eis senão quando, em 2021, numa viagem a Portugal, incidentes críticos se sucederam em catadupa. Várias vezes – mais concretamente, vinte e três vezes – escutei a mesma pergunta:

“Professor, lembra-se de mim?”

Não “lembrava”. Quem a mim se dirigia desse modo estava casa dos cinquenta anos de idade, e eu já septuagenário. Perguntava quem eram e onde nos teríamos encontrado, conhecido. 

“Fui seu aluno na universidade.”

“Fui sua aluna na Escola Superior de Educação.”

As respostas convergiam no tempo em que fizera formação inicial de professores. No tempo em que eles contavam vinte e poucos anos. Em dois mil e vinte e um, três décadas decorridas sobre a conclusão dos seus cursos, esses jovens cinquentões, na sua maioria, eram diretores de agrupamentos de escolas, autarcas, lideranças com poder de decisão. 

Aqueles educadores dispunham (finalmente) de condições de concretizar a “escola dos seus sonhos”, nome de um documento recheado de evidências de aprendizagem, que apresentaram aos seus colegas (e a mim), no final do último semestre do seu curso.

Regressado ao Brasil, decidi manter-me “na ativa” por mais algum tempo, de modo a poder ajudá-los a “realizar os seus sonhos”. Talvez fosse capricho do destino o simultâneo ressurgimento de pedidos de ajuda provindos de famílias e professores. Escutei queixas e intenções, defini uma data-limite para parar a vida de andarilho e me lancei na elaboração de uma proposta, que dei a conhecer num livrinho.

Quando me lancei num urgente exercício de escrita, apercebi-me de que não poderia reunir num só livro o manancial de “informação” requerida por quem motivou uma mudança de rumo de um velho professor. Resolvi quedar-me pela elaboração de algo que nunca imaginei ter de fazer – um esboço de “manual” – pospondo para mais uma dezena de tomos o aprofundamento do conceito e da prática de “novas construções sociais de aprendizagem e de educação”.

O primeiro dos tomos não passava de uma “introdução” a outros livrinhos, que dei à estampa, ao longo de dois mil e vinte e quatro, exatamente, durante o tempo de um processo formativo iniciado em fevereiro e que se prolongaria pelo tempo necessário para a criação de uma rede de comunidades de aprendizagem – a primeira das novas construções sociais – organizadas em assembleias de redes. 

Na Antiguidade Clássica, grandes obras eram subdivididas “volumen”, rolos de papiro. Por se tratar de uma obra menor, não a reparti por “volumes”, optei por segmentá-la em tomos. Tomo substantivo também poderia assumir-se como conjugação do verbo “tomar”, e eu pretendia que o alimento do espírito fosse “tomado” em pequenas e praxeológicas (conjugação de teoria e prática) doses. Isto é: que a redação dos vários tomos fosse acompanhada de transformações operadas no processo de formação.

Netos queridos, quereis que vos conte o que escrevi no primeiro dos tomos?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MCDXC

Belo Horizonte, 26 de janeiro de 2044,

Há vinte anos, por esta altura, estava indo para mais um lugar onde havia morado e trabalhado, gratuitamente. Um homem rico, dono de uma escola, me havia pedido para dela “fazer uma Escola da Ponte”.

Naquele tempo, eram muitas as escolas que, para atrair matrículas, propagandeavam terem adotado “o Método da Ponte”, como se a Ponte fosse “um método”. Outras tentavam usar o vosso avô como aquilo que os brasileiros designavam de “garoto propaganda”. Certo é que, enquanto o vosso avô, gratuitamente, ajudava a melhorar a vida de professores e crianças, muita gente fazia fortuna palestrando sobre a Escola da Ponte. 

A imoralidade grassava num sistema de ensinagem obsoleto. Para aqueles que se aproveitavam de trabalho alheio, a ética era coisa de papalvo. Frequentes eram as pequenas traições e abusos de confiança. Não foi o caso da Lilian.

Conheci a Lilian na escola do homem rico. Fora contratada pelo dono da escola, para com ele colaborar na destruição de um projeto que, com a Claudia, eu havia desenvolvido naquela escola. O projeto se dissolveu entre os caprichos do dono dessa escola e a conivência de dadores de aula, que, para não perderem o emprego, perderam a dignidade. A sua desonestidade intelectual foi recompensada com tablets oferecidos pelo dono da escola, que acreditava que o dinheiro poderia comprar consciências. 

Queridos netos, vos pouparei à descrição de fatos pouco edificantes, aos efeitos da negação de valores consagrados no projeto dessa instituição, do autoritarismo de uma coordenadora, do conservadorismo de famílias-clientes de uma escola-fraude. 

O trabalho sério de reflexão sobre as práticas, um acervo de rica documentação arquivada num computador, desapareceu “misteriosamente”, provavelmente, pelas mãos de uma coordenadora. Conceitos como “democraticidade, diálogo e responsabilidade ética” continuaram a enfeitar o projeto (escrito), enquanto os padrões de comportamento cotidiano refletiam uma herança civilizatória contraditória com a matriz axiológica. 

Atenta às intenções do contratante, a contratada Lilian reagiu com lealdade, mas em relação ao projeto. Isso mesmo, queridos netos, aprendi com a Lilian o valor da lealdade. Com essa amiga, aprendi que, no seio de uma crise moral, ainda valia a pena acreditar nos professores.

Naquela tarde, coube à Lilian fazer-me perguntas, num encontro promovido pelo amigo Paulo (eu chamava amigo a todos os amigos das crianças). Foram perguntas certeiras, que despertaram tristes memórias e me fizeram reagir emocionalmente, lançando no auditório outras certeiras perguntas. 

Concluí, pedindo aos educadores presentes que assumissem um compromisso ético com a Educação. Convidei-os a tomar a decisão ética de reelaborar a sua cultura profissional, para que a todos os seus alunos fosse garantido o direito à Educação:

“Sede leais às crianças.”

Diz-nos o dicionário que lealdade é qualidade, ação ou procedimento de quem é leal, honesto, fiel a compromissos. A lealdade, como qualquer outro valor, com gente leal e no exercício da lealdade se aprende, no seio familiar, no cotidiano das escolas ela se cultiva. 

Não nascemos reflexivos; aprendemos a refletir. Não nascemos com virtudes; aprendemos virtudes. Em extraordinárias escolas aprendei a lealdade a ideários. Com outros educadores, busco assumir o princípio básico de Santo Agostinho: quando não se pode fazer tudo o que se deve, deve-se fazer tudo o que se pode, sendo leal a si. 

No Brasil, reaprendi a lealdade a novos companheiros de projeto. E o que aconteceu?

 

Por: José Pacheco

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