Santo Tirso, 14 de março de 2044
Volto à terrinha, para presencialmente me redimir de erros cometidos. Acreditei nos bons propósitos ministeriais e acabamos por perder meio século de oportunidades de democratização da Escola e de humanização da Educação.
Pior! Involuntariamente e por Amor, menti. Prometi à minha neta uma Escola à medida dos sonhos de qualquer criança:
“Eu explico… Os teus pais conheceram-se, amaram-se e quiseram que viesses ao mundo num tempo incerto. Não esperaram por tempos seguros, que, nestas coisas do amor como nas de aprender e ensinar, o que é urgente não deve esperar. Impedidos de concretizar o sonho de fazerem as crianças mais felizes, afastados daqueles que aprenderam a amar, os teus pais mudavam de casa, ano após ano. Dentro da casa, levavam o teu berço para longe das paragens habitadas pelos teus avós.
Se não te disse as palavras doces no tempo certo, agora me redimo. Falar-te-ei em nome de todos aqueles que, em perturbados tempos, se deram a utópicas tentativas de dar sentido a experiências que a maioria das crianças que foram as da geração dos teus pais e avós não puderam conhecer.
Falar-te-ei de professores que acreditavam ser possível pôr humanidade no ato de aprender e ensinar. Quero que saibas que havia pessoas assim.
Através das imperfeitas palavras, farás a viagem ao tempo em que em que se desenhavam os destinos das crianças futuras, projetos (como então se dizia) de escolas de um devir luminoso.
Comecemos… pelo princípio. No final da década de sessenta do século passado, o meu esperançoso envolvimento na abortada Reforma Veiga Simão resultou em desilusão e precipitou a minha decisão de abandonar uma carreira de engenheiro e de me fazer professor.
Salazar morrera. A ditadura amainara. Na chamada “Primavera Marcelista”, o vosso avô contribuía, nas margens do possível, para a transformação da escola salazarista numa escola pública, berço de democracia e de igualdade. A educação para a cidadania salazarista deveria ser substituída por uma educação no exercício de uma cidadania plena.
No Portugal de mil novecentos e setenta e um, grupos de professores influenciados por correntes cooperativistas introduziram duas inovações no projeto: o trabalho em equipa de dois ou três professores; a consideração de núcleos de espaços para grupos de alunos, fugindo ao tradicional sistema de turmas-classes. Apesar de refletirem a tendência para a criação de “classes de nível”, anteciparam a constituição daquilo que, mais tarde, seriam os núcleos de projeto Fazer a Ponte.
Uma figura ímpar surge no limiar da década de setenta. Rui Grácio acreditava que o destino dos pedagogos era o de “preencher o espaço entre o ensino e a aprendizagem, entre a teoria e a prática, entre os alunos e os professores, entre a ciência e a arte, entre diferentes disciplinas, preencher este espaço e transformá-lo em ação.” O amigo Nóvoa assim descreve aquele que foi um dos primeiros inspiradores do trabalho do vosso avô:
“Para Rui Grácio, o problema da “democratização do ensino” é, acima de tudo, político, pois “a grande máquina do sistema escolar não pode ser entendida fora da sua integração no mais amplo sistema sociopolítico da comunidade”. Trinta anos depois da sua morte, é uma ambição ainda longe de estar cumprida, em Portugal e no mundo.”
Nóvoa publicou esse texto em 2021, quase 50 anos após a transição para a democracia, quando a escola democrática ainda era uma “miragem”. Uma democracia que não cuidara de democratizar a Educação continuava controlada por lideranças tóxicas e era berço de tentações totalitárias.
Por: José Pacheco
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