Aveiro, novembro de 2039
No mês de Novembro de há vinte anos, voltei a Aveiro, porque educadores éticos me chamaram. Naquela altura, eu ainda podia atravessar o oceano, para os ajudar. Nessa viagem, encontrei o país da educação entretenido com mais uma tentativa de reforma de um obsoleto modelo de ensino. A intenção do Secretário de Estado era bem fundamentada e generosa, mas o projeto definhava. Nos tenebrosos meandros de um monstro burocrático, que dava pelo nome de Ministério da Educação, obscuros interesses se impunham. E a euforia dava lugar a cedências, à aceitação de imposições, à deturpação do discurso e das práticas, nada que eu já não tivesse visto, nos mais de cinquenta anos de professor de escola pública.
Analisei as fichas de avaliação do chamado “projeto de flexibilização curricular”. Deparei com itens como: ““% de carga horária a gerir livremente”, ou “carga horária (minutos) por ciclo/nível e ano”. Eram contas de merceeiro, que denotavam um determinado conceito (e prática) de currículo. Impunemente, meirinhos ministeriais continuavam a contrariar o disposto na lei: “primado dos critérios de natureza pedagógica sobre os critérios de natureza administrativa e à possibilidade de adoção de soluções organizativas diversas”.
Eu já vinha do tempo do ministro Veiga Simão, que vira a sua reforma ser reformada. Após o Abril de 74, participara da chamada “animação pedagógica”. E a animação foi sufocada por ação de burocratas do tempo da velha senhora, ainda incrustados em tenebrosos interstícios ministeriais. Na década de oitenta, novo impulso e renovada esperança: o PIPSE prometia mudança e não recusei o meu contributo. Mas a euforia deu lugar ao desânimo. Até que um projeto de “gestão flexível” surgiu na década seguinte, reacendendo as cinzas de anteriores projetos. Tudo em vão. Imposições de natureza administrativa deitaram por terra os argumentos de natureza científica. Até que, em finais dos anos 90, fui incumbido de dar “parecer” sobre uma “proposta de reorganização curricular”. Com mais dois companheiros do Conselho Nacional de Educação”, foi elaborado o “parecer”, que questionava a introdução do “estudo acompanhado”, da “direção de turma”, a “área de projeto” e aulas de “educação cívica”, meros paliativos e tentativas de desresponsabilização curricular.
No culto do curricularmente correcto, os fazedores de opinião refugiaram-se num discurso de conveniência, os estudiosos remeteram-se para a teorização de teorias e os professores consentiram múltiplas manipulações. Mais uma vez, a montanha parira um rato. O que ficou de “inovador”, no final do século XX, foi dar aulas de 90 minutos, uma dose dupla de tédio. No século XXI, algo semelhante se anunciava como “inovador”: passar de trimestre para semestre… A “gestão flexível” do currículo quedava-se reduzida a um mero jogo de somas e subtrações de tempos letivos.
Um despacho ministerial com data de 6 de Setembro de 1975 rezava assim: as modalidades organizativas deverão ser diversificadas, deve ser combatida a tendência para um ensino meramente livresco, deve atender-se à dupla perspectiva da educação do indivíduo e do cidadão. Quase meio século decorrido, creio ser pertinente perguntar: como se poderá flexibilizar o currículo e reorganizar a educação, se não cuidamos de refundar a Escola?
Voltarei ao assunto, porque sei que vos interessa. Por agora, apenas vos envio o amoroso abraço deste velho, mas resiliente avô…
Por: José Pacheco
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