Joanópolis, janeiro de 2040,
Ainda em viagem pelo interior, de passagem pelos domínios do “lobisomem”, não sei por que razão, me veio à mente um episódio de meados do século passado. Falar-vos-ei de dois professores que “davam a quarta classe”. Um era moço e inexperiente. A outra era mulher na casa dos sessenta de idade e levava de vantagem quarenta anos de brilhantes avaliações de desempenho, que lhe conferiam fama de boa professora. Fazia alarde da auréola e gabava-se de que qualquer aluno que levasse a exame só poderia de lá sair aprovado ecom distinção.
De tão rigorosa e cumpridora, também cumpria a percentagem estabelecida de reprovações. Em consonância com os ideólogos do regime, postulava que “nem todos podiam dar doutores”. E, do alto da experiência, dava como exemplo o caso do Toino Bica que, já entrado nos doze, passava as aulas a dormitar na “fila dos burros”.
A afetividade também era conhecimento construído através da vivência. Aceitar o ser humano como um ser afetivo, que pensava e sentia simultaneamente, implicaria um outro olhar sobre as práticas, que não poderiam ser restringidas à dimensão cognitiva. As escolas deveriam entender mais de seres humanos e de amor, do que de conteúdos e técnicas, mas contribuíam em demasia para a construção de neuróticos, por não entenderem de amor, de sonhos. E o meu amigo Rubem assim resumia o seu saber e sentir: As rotinas e repetições têm um curioso efeito sobre o pensamento: o paralisam. A nossa estupidez e a nossa preguiça nos levam a acreditar que aquilo que sempre foi feito de um jeito deve ser o jeito certo a fazer.
Evoco o amigo Rubem porque, em meados da década de 1970, embora fosse de confecção em cada escola, ainda era tempo de “exame de quarta classe”. Pelo final de junho, a professora antiga já tinha o exame preparado, mas teve para com o jovem colega uma gentileza inédita: O colega não quer acrescentar qualquer coisa à prova?
O colega quis. O poema do Torga, que encimava o teste, estava semeado de fabulosas imagens e falava de amor. E a meia dúzia de perguntas escolhidas pela velha e experiente professora somente visavam respostas diretas, do tipo: Onde estava o x? O que tinha feito o y? Quem tinha visto o z? Para não tornar o interrogatório demasiado longo, o jovem professor apenas acrescentou uma questão.
Como todas as provas que se prezam, esta começou pela leitura e interpretação do texto. E a prova começou…
Volvidos alguns minutos, um após outro, todos os alunos da velha e experiente professora suspenderam a escrita. Ora coçavam a cabeça, ora manifestavam outros sinais de impaciência e até deangústia.
O professor novo e inexperiente apercebeu-se de que haviam esbarrado na pergunta número sete. E não ousavam passar-lhe à frente, porque a senhora professora era exigente e tinha avisado que não poderiam deixar qualquer das perguntas para trás, sem resposta.
Quase todos os alunos do professor moço e inexperiente já estavam a acabar a redacção de vinte linhas e tópicos obrigatórios, quando algumas lágrimas já assomavam nos olhos suplicantes de alguns dos óptimos alunos da velha e experiente professora. O professor não se conteve. Foi junto de cada um e sussurrou-lhes uma qualquer mensagem ao ouvido, que os deixou aliviados e lhes permitiu desencalhar o raciocínio... e a sensibilidade.
Acrescente-se que a sétima das questões era imperativa e rezava assim: “Depois de leres este bonito poema, diz o que é, para ti, o amor.”
Com Amor, o vosso avô José.
Por: José Pacheco
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