Gondomar, janeiro de 2040
Num “saltinho” a Portugal, aproveito para rever velhos amigos. Mesmo velhos, que essa amizade nasceu em meados do século passado. Cruzando o oceano, reli mensagens de um janeiro também de muitos anos atrás. Foram centenas aquelas que recebi, ao longo de meio século, notícias de desistências, de projetos destruídos:
Caro professor, neste momento estou num buraco negro. Entrei em atestado médico, tentando perceber o ânimo que poderia ter num regresso. Desde do dia em que voltei, tem sido sofrimento por uma causa, pois foi e é um sofrimento entrar naquela escola. Não tive nenhum apoio consolidado, guerreei só. Ninguém quer ver uma educação diferente. Além do processo disciplinar, existe uma junta médica, e sei lá que mais (…). Terminando, desejava contar com a sua ajuda, para poder estar mais em paz. Por lealdade e respeito que tenho pelo seu trabalho, me retiro de um sonho incompleto, de uma batalha. Amanhã, estarei em consulta de psicologia. Já não tenho condições para isto, nem para defender o que quer que seja. Fica aqui o meu repto de pedido de ajuda séria, pois,repito, não consigo voltar àquela escola.
Na obra O Brasil como problema, Darcy questionava: Quem implantou esse sistema perverso e pervertido? E propunha um diagnóstico dos obstáculos cruciais, que a nação brasileira precisaria ultrapassar, para se desenvolver. Nesse livro, o maior dos obstáculos seria a nefasta ação de um certo tipo de intelectual: o áulico. Em duas cartas, vos falei de energúmenos. Energúmeno era, também, sinônimo de indivíduo alienado, exatamente o perfil de um áulico: um alienado, colaboracionista num genocídio educacional caucionado por uma opinião pública acrítica e patrocinado por energúmenos da política, e até mesmo por… “professores”.
Naquele tempo, poderíamos identificar dois tipos de áulicos: os ingênuos (ou ignorantes) e os esquizofrênicos. Os primeiros controlavam estruturas do poder público. Os outros infestavam universidades, comissões de especialistas e se exibiam em gongóricas e anestesiantes palestras, nos palcos de inúteis congressos.
Ambos prosperavam, vivendo à sombra do poder, produzindo ideias irrelevantes, planos inconsequentes, contribuindo para destruir qualquer esboço de inovação. Manifestavam peculiares sintomas de esquizofrenia, pois diziam que o aluno deveria estar no centro do processo de aprendizagem, mas praticavam ensinagem, em aulas centradas… no professor.
Talvez nem fosse esquizofrenia, mas comportamento antiético de quem, sendo especialistas em ciências da educação, conhecedores dos maléficos efeitos de práticas fundadas no paradigma da instrução, contribuíam para as manter. Em assessorias e coordenações de projetos da iniciativa do sistema, os áulicos legitimavam paliativos do esclerosado modelo educacional, optavam por se venderem, pecando por omissão, cumprindo o vil papel de evitar que mudanças acontecessem.
No reino dos áulicos, reinava o servilismo, a mentira, a ostentação, o brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, para “ganhar prestígio” e engordar contas bancárias. Mas a crise ética instalada também era tempo de oportunidades. E quase nada era mais inconcebível do que o aparecimento de um instinto de verdade honesto e puro. Foi por essa altura que aconteceu o que vos irei contar…
Por agora, aproveitemos a minha breve presença neste frio solo lusitano, para mitigar saudades deste vosso (voluntariamente) exilado avô. Não demorarei a voltar, porque janeiro é um mês quentinho… no Brasil.
Por: José Pacheco
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