Estórias da Velha Escola (XLIV)

Piodão, janeiro de 2040

Há exatamente vinte anos, quando visitava a bela aldeia, recebi a notícia de que o MEC havia erradonas notas do Enem e garantia que iria corrigir problemaCiosa da sua carioca ascendência, Cláudia logo me disse que o “jeitinho brasileiro”permitiria enjeitar responsabilidades em mais uma ministerial besteira. E assim foi…

O presidente do Inep tentava minimizar o prejuízo, afirmando que a falha poderia, quanto muito, prejudicar apenas cerca de 39 mil pessoas. Coisa pouca, como se vê... E o ministro atirava a culpa para a gráfica, que imprimira a prova.

O sistema havia corrigido provas como se fossem de outra cor.

Naquele tempo, se desperdiçava milhões de reais em policiamento, vigilantes e sofisticadas estratégias e proteção do gabarito, na ilusão de que se poderia obstar ao brasileiro jeitinho de colarO ministro havia comemorado em diversas ocasiões que a última edição do exame havia sido a melhor de todos os tempos por falhas não terem sido registradasEngano de alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito, como se viu: uma imagem da prova havia vazado, enquanto os candidatos ainda a faziamMas, já em 2009, quando o Enem fora transformado em vestibular nacionala prova vazou e o exame teve que ser adiado. No ano seguinte, mais uma falha relacionada ao gabarito. Em 2011, novo vazamento de questões. Naquele tempo, ainda subsistia a crença – melhor dizendo, ingenuidade – nas virtudes de um teste.

O MEC ignorava que o problema não era o ter errado nas notas do Enem. ENEM era elaborado com base na Teoria da Resposta ao Itemà semelhança do que era uso em exames de outras áreas, nomeadamente, na Publicidade, ou no Ranking Esportivoera uma espécie de travesti do vestibulartermo ENEM não passava de um eufemismo. Era uma prova “melhorada”, mas era uma prova, o mais falível dos instrumentos de avaliação.

Para além de não ser rigoroso e de ser, na sua essência, excludente, esse exame não era uma oportunidade de sair do “ensino inferior” para o “superior”, não era um vestíbuloera a própria câmara de tortura.  E nem seria necessário ter feito doutoramento em docimologia, para saber que uma prova quase nada avalia, ou talvez apenas me disse a capacidade de retenção de informação (não de conhecimento!) na memória de curto prazo. Mas, no FaceBook, o professor Edson questionava: Por que o ENEM não avalia? E a Paula afirmava que o ENEM selecionava os melhores e impedia a entrada de semianalfabetos nas faculdades.

Com todo o respeito pelas suas interrogações e convicções, lhes disse que, quando trabalhei na universidade, encontrei muitos alunos semianalfabetos, que tinham sido aprovados no ENEME me apercebi de que o ENEM não passava de um sutil processo de darwinismo social. Pois que, salvo melhor entendimento, a legislação brasileira, com referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem, estabelecia que a educação era um direito de todos. Uma educação, que ia do jardim infantil até à universidade, embora só fosse obrigatória até ao final do ensino médio.

Se a escola obrigatória fizesse avaliação e não fizesse classificação, se a avaliação fosse formativa, contínua e sistemática (como estabelece a LDBEN), no final do ensino médio os alunos apresentariam no seu portfólio evidências de aprendizagem, que lhes dariam o direito a continuar estudos no… ensino superior. As aberrações chamadas vestibular e ENEM desapareceriam. E, com elas desapareceria, também, a muito lucrativa indústria do cursinho.

Por: José Pacheco

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