Ibiúna, 15 de março de 2040
O início de década de vinte ficou conhecido pelo tempo do vírus corona. Perante medidas como o cancelamento das aulas, o ministro da saúde manifestava preocupação: a liberação das crianças, potenciais vetores de transmissão, exporia ainda mais um dos principais grupos de risco: os idosos. A covid-19 preferia dizimar, prioritariamente, pessoas com mais de 60 anos, pessoas como o vosso avô.
Alguns especialistas recomendavam que crianças e adolescentes evitassem o contato com parentes acima dos sessenta anos. Mas, se os pais teriam de ir trabalhar, amorosamente, os avós se expunham ao contágio. Quem iria cuidar das crianças, que não iam à escola, na ausência dos pais? Os avós!
O vírus demonstrava que, com ou sem escola-gueto de crianças, nunca os avós deveriam ser separados dos netos. O vírus ensinava que jamais a relação entre as duas gerações deveria ser interrompida. Que a educação era tarefa conjunta da escola, da família e da sociedade. Que as escolas não eram prédios, mas pessoas, e que as pessoas deveriam agir solidariamente, em comunidade.
Por esse tempo e para os lados de Ibiúna, andava a minha amiga Mila em busca de ajuda para a sua equipe de projeto. Talvez não tivesse, de imediato, entendido que a ajuda não viria de teóricos e áulicos e que o seu maior mestre e aliado era o covid-19. A mensagem que o vírus deixava aos mortais era a melhor das ajudas.
A ameaça global requeria solidariedade global. Exigia que as pequenas diferenças se tornassem insignificantes. A humanidade não precisaria de passar por nova provação, para se permitir repensar o modelo de escola, que, nesse tempo, era hegemônico e que havia sido afetado pelo vírus da corrupção intelectual e moral. Eu queria acreditar que a Mila – inteligente e sensível, como qualquer professora – acabaria por entender a mensagem.
Outro educador sensível, o meu amigo André, havia inoculado outro “vírus” na sua prática – o vírus da mudança – que levaria a sua prática muito para além da escola instrucionista criada pelos estados-nação europeus do século XIX. O André se iniciava em novas práticas, anunciadoras de uma sociedade solidária e de cooperação global. E sofria por escutar alunos manipulados por uma mídia irresponsável e por práticas escolares, que fomentavam o egoísmo e múltiplas ignorâncias: Professor, vou jogar álcool gel na caixa d’água lá de casa. Quando tomar banho e lavar as mãos, vou matar o vírus. Professor, ontem, eu limpei meu celular por causa desse vírus. Pinguei água e um pouco de detergente e limpei com papel. Ele tá funcionando normalmente.
Era esse o nível de preparo científico que a escola de então promovia. Porém, discretamente, um imenso potencial humano se revelava. Porque esses tempos de crise eram, também, tempos de novas oportunidades. O quase centenário Edgar Morin assim resumia a situação: A sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade? Mas, como reformar a sociedade se não se reforma a escola? E o meu amigo António Nóvoa afirmava que o bem da humanidade ia muito para além dos interesses e benefícios pessoais. Que nada poderia ser pensado apenas à luz do tempo imediato, mas colocado à vista de um futuro, que não dispensava os educadores das responsabilidades no presente.
Nesses conturbados tempos, houve quem escutasse esses mestres.
Por: José Pacheco
472total visits,4visits today