Valinhos, 24 de março de 2040
Gosto de ver nascer o sol, um dos momentos de diário convivo com o sagrado. Hoje, ao contemplar o nascer do sol e os pássaros ocupados na costumeira azáfama matinal, recordei outra manhã, uma manhã radiosa, que coloriu de esperança tempos sombrios de 2001. O meu amigo Rubem Alves passava alguns dias na minha casa. E, mais uma vez, o levei a visitar a Escola da Ponte.
Pelo caminho, fomos escutando um concerto para piano. Estacionei o carro junto à escola, mas dele não saímos. Após escutarmos o segundo andamento, um reverente silêncio se instalou em nós. Ao meu lado, visivelmente, emocionado, o Rubem enxugava furtivas lágrimas. Emocionado já eu o vira, nas nossas visitas ao seu sítio de Pocinhos de Rio Verde e a Valinhos. Nessas viagens, era o Rubem quem dirigia. E, sempre que ele parava a viatura, eu sabia que isso se devia a ter surgido a visão de um ipê. Quando perguntaram a uma criança quem tinha sido Rubem Alves, a criança respondeu: O Rubem era um homem que gostava de ipês.
O Rubem escreveu no livro “A Escola com que sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir”: Quero uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios. Sempre com o brilho dos inícios! Como fazem as crianças e os adultos, que não matam a criança que há em cada um de nós. O Rubem dizia que, quem mata a criança grande que tem dentro de si, não fica adulto – adultera-se.
Querido Marcos, há quase quarenta anos, no colo do teu pai, balbuciavas uns sons só aparentemente desconexos. E eu, que estava longe de ser um entendido na palavra pura, que ainda confundia uma arenga babélica com a fala transparente, não conseguia traduzir o teu balbuciar. Este avô, ainda que empenhado no desaprender do palavrear adulto, deturpava o verbo virginal, confundindo-o com o linguarejar de adultos tagarelas. Subitamente, fixaste o olhar num ponto qualquer, como quem depara com o Aleph.
Não interrompi a absorvente contemplação e segui a direção do seu olhar. Fixava-se num dos gestos rituais de passagem de ano, protagonizado por um adulto comendo uvas raquíticas e formulando desejos para um ano que começava, e no qual iria repetir os mesmos erros que desejou não cometer no último dos dias do ano anterior. Os adultos eram mesmo assim. Viviam viciados no futuro.
Não sei se te recordarás, querido neto, de um livrinho, a que chamei “Para os Filhos dos Filhos dos Nossos Filhos”. Ele nasceu nessa noite de passagem de ano e viria a ser transformado numa bela peça de teatro, pela minha amiga Janaína. Escrevi-o especialmente para ti e para as crianças agora nascidas. Era como que uma história da educação contada às crianças, que só terminaria, agora, no tempo dos filhos dos filhos dos filhos dos vossos pais. No nosso tempo, na Idade da Educação.
Nesse livrinho, eu recuperava a velha fábula do Adam Férrière. No início do século XX, esse pedagogo da Escola Nova publicara um texto com o título “Escola Invenção do Diabo”. E só mesmo o Diabo poderia inventar uma escola onde se proibia as crianças de ver o mundo com olhos de inícios. Muitos adultos tinham perdido essa virtude. No tempo do vírus corona, depois de proclamar o caos e decretar novas solidões, os adultos pareciam ter perdido a oportunidade de não se fecharem ao novo e ao imprevisível.
Por: José Pacheco
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