Carapicuiba, 26 de março de 2040
No final de março de 2020, a pandemia havia entrado em regressão em alguns países. Na China, não registravam novos casos de infetados pelo vírus e mais de metade do total de infectados já havia recuperado. Todos os sete pacientes tratados num hospital de Nova Délhi se recuperaram. Numa combinação de medicamentos, médicos indianos obtinham sucesso no tratamento e pesquisadores do Centro Médico Erasmus afirmavam ter encontrado um anticorpo contra o vírus. O plasma de pacientes recém-recuperados podia tratar outros infectados. Na Coréia do Sul, o número de novos casos estava diminuindo. Uma avó chinesa de 103 anos se recuperara totalmente. A China havia fechado o seu último hospital de tratamento de infetados com o vírus corona. E a Apple reabria todas as suas lojas da China…
Os noticiários veiculavam essa informação e alguns governantes brasileiros tomavam decisões responsáveis, como o confinamento nos lares, para suster o contágio. Outros políticos, em manifestações de irresponsável liderança, ora diziam não haver motivo para preocupações, ora contribuíam para semear a visão do apocalipse. Se um bispo afirmava que o desprezo à ciência poderia ser desastroso, um pastor garantia que ninguém iria pegar coronavírus em um culto. E enfatizava: Se algum crente botar o pé aqui [no culto], esse vírus morre.
A crendice desprezava a medicina. Irresponsáveis desdenhavam da ciência, colocando em risco a saúde da população. A preocupação com a bolsa de valores parecia maior do que garantir a preservação da vida humana. Mas, se algo o vírus nos ensinara fora que, após sair da crise, seria necessário repensar uma economia predatória e pensar um modelo de economia solidária. Eu temia que, depois de dissipada a crise, a normose regressasse e não houvesse um “novo início”, que os brasileiros não tivessem entendido a recomendação do vírus e continuassem a ignorar a necessidade de mudança no sistema político, no econômico e… no educacional.
No campo educacional, o Brasil insistia manutenção de práticas instrucionistas, embora dispusesse de práticas potencialmente inovadoras. Enquanto, na manhã de hoje, passava pelo Carapicuíba, me lembrei de que fizera uma visita à Casa Redonda, um dos projetos de que o Brasil se poderia orgulhar. Na Casa Redonda, convivi com a alegria espontânea das crianças. Observei-as, enquanto brincavam, no exercício de uma liberdade que lhes permitia viver seu próprio tempo. Eram de elevada qualidade as experiências vividas pelas crianças e propiciadoras de aprendizagens significativas. Já os gregos da antiguidade clássica sabiam que o ócio é o tempo necessário para o desenvolvimento da reflexão e da capacidade de pensar. E uma verdadeira scholé – o “lugar do ócio” – ali acontecia.
No decurso da crise vírica, nas gôndolas de muitos mercados, dois produtos haviam sumido: papel higiénico e jogos de tabuleiro. O corpo brincante das crianças, confinado ao espaço do seu lar, se limitava a sedentárias ocupações. Por força das circunstâncias, o espaço restrito da casa limitava o brincar de gestos amplos, expansivos. O brincar restrito a jogos de concentração intelectual contribuía para consolidar o resultado do uso prematuro do computador. Se uma criança de tenra idade chorava, ou usava o grito para captar a atenção dos adultos, de imediato, os progenitores lhe colocavam na mão, não um clássico brinquedo, mas uma consola de jogos, ou um celular. E as crianças iam desaprendendo de brincar.
Por: José Pacheco
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