Sorriso de Mato Grosso, 29 de abril de 2040
Na última semana desse abril, me convenci de que o primeiro dia desse mês não tinha sido o único “dia dos enganos”.
Em verdade vos digo que todos os dias estivemos enganados. Notícia na primeira página de um jornal: Vendidas máscaras falsas; Contágio pode disparar em maio! Num site da Internet: Comércio quer antecipar reabertura, para não perder “Dia das Mães”. No WhatsApp: Os órgãos oficiais anunciam mais um recorde de mortes em um dia: 474.
Busquei lenimento em mensagens feitas de carinho e esperança, que recebia de amigos, que não se deixavam enganar: Com o triste dado de hoje, o Brasil ultrapassa negativamente a China, que tem oito vezes a população do Brasil. Estou triste, por tudo isso. A lua, pela sua infinitude me convida, diariamente, a ficar em isolamento, e a esperançar. Suas palavras me fazem sentir menos só, professor. Envio-lhe um texto, que encontrei na Internet: “Dez razões, para que as aulas não reiniciem, enquanto a pandemia não estiver rigidamente controlada”. Dei como resposta:
Dar-te-ei mil razões, para que as aulas não se reiniciem, quando a pandemia acabar. E outras mil, para que nunca mais voltem.
Os jovens queriam poder reencontrar amigos, estavam ansiosos por celebrar a vida, coletivamente. A escola da aula voltaria a propiciar-lhes esse encontro, mas a troco de lhes impor um engano. O vírus mostrara que uma aula, presencial ou virtual, era um ritual em que os professores fingiam que ensinavam, enquanto os alunos fingiam que aprendiam. Eu havia deixado de “dar aula”, desde há mais de meio século. Durante todo esse tempo, fraternal e construtivamente, disponível para ajudar, eu perguntava aos professores:
Todos os vossos alunos aprendem?
A resposta era uníssona: Não. Muitos precisam de aulas de reforço. Muitos reprovam, outros vão par a educação de jovens e adultos…
Acreditando na inteligência e profissionalismo dos professores, eu insistia:
Se sabeis que, “dando aula”, negais o direito à educação a muitos alunos, continuareis “dando aula”?
Não respondiam. Refugiavam na sua zona de conforto.
Aos especialistas eu pedia que me dessem um exemplo de pedagogo contemporâneo, que abonasse a prática da aula: Rogava que fundamentassem cientificamente esse dispositivo central dos sistemas de ensinagem.
Os especialistas não sabiam que exemplo dar. Não apresentavam uma explicação científica para a manutenção daquele fóssil pedagógico. E continuavam “dando aula”.
Havia gente séria no chão das escolas, mas também na universidade. Entre os mestres na arte da aula, alguns assumiam estar no fim de um tempo e assim se expressavam:
A presença é fundamental, mas nem sempre ela se traduz como interlocução real. Falar de uma coisa que você está cansado de saber, de cor, chega lá e despeja. Uma aula magnífica, mas que não chega a ninguém, não tem nada.
Esses professores eram profissionais críticos da sua prática e exerciam influência sobre as novas gerações:
Tenho um colega que, quando vê aluno rondando pelo corredor, lhe diz:
O que você está fazendo aqui?
Ah, eu vim assistir a uma aula.
Vai para casa ler, vai para casa estudar!
Mas eu quero assistir à aula de fulana.
Não vai assistir aula de ninguém! Você ganha muito mais, se você ficar na sua casa, lendo o livro para, depois, colocar na sua tese, do que você ficar aqui…
Havia gente séria, coerente. Com essa gente, eu ia fazendo a minha parte, trabalho de beija-flor, para tentar impedir que toda a floresta ardesse.
Por: José Pacheco
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