Fátima, 13 de maio de 2040
Neste dia, mas há vinte anos, celebrava-se a aprovação da Lei Áurea, o 13 de maio de 1888, quando, oficialmente, se extinguiu a escravidão no Brasil. No 13 de maio de 2020, em Portugal e pela primeira vez na história, se celebrava o aniversário das aparições em Fátima, com o santuário deserto e as autoridades eclesiásticas pedindo aos fiéis que acompanhassem as celebrações, em casa, com uma vela acesa na janela. A América superava a Europa em infectados e era o novo foco mundial da pandemia. Os Estados Unidos registravam quase 1900 mortes nas últimas 24 horas. E a Unicef advertia que a pandemia poderia matar, indiretamente, 6000 crianças por dia.
Urgia proteger das crianças, mas a pressão para flexibilizar o isolamento social aumentava. Muitas escolas particulares abriam falência e o ministério preparava a rota de fuga da regulamentação do ensino domiciliar. Nas estruturas familiares que terceirizavam a educação da infância e nos porões das “famílias tradicionais”, as crianças já começavam a ser um “estorvo”. Consciente de corríamos o risco de a pressa de “voltar à escola redundasse em tragédia, o amigo Matias lançava veementes apelos:
Deixem as crianças em paz e não façam de conta que a escolarização segue os cânones normais. Esqueçam as notas e as classificações. Foquem-se numa avaliação que possa gerar mais aprendizagem. Não afoguem as crianças com classificações, modismos escolares totalmente despropositados. Os pais não podem ser transformados em auxiliares da ação educativa dos professores e das escolas. Promovam aprendizagens e requeiram evidências que os alunos possam realizar (não os pais). Afirmem a importância da comunicação informalizada, a convivialidade familiar, libertem a casa da lógica da escolarização…0%
Na Internet, escutei esta escabrosa declaração: “Se voltassem às aulas, elas (as crianças) deixariam de “atrapalhar”. Foi difícil conter a indignação. Durante a minha vida de professor, sempre estivera do lado das crianças e ao lado daqueles que tinham como missão protegê-las. À semelhança de uma psicóloga, que tentava preservar a vida dos seus dois filhos e a dos filhos e outros pais:
Compreendo que venham dar resposta a um problema importante das famílias e das empresas. Mas, enquanto profissional, não posso admitir que bebés e crianças passem pelo que se anuncia. Desde a máscara a tapar o rosto dos profissionais, assustando as crianças pequenas e perturbando os bebés (sabemos a importância do rosto enquanto organizador psíquico, nestas idades); ao impedimento do livre movimento das crianças; à proibição do brincar livre, da partilha, da aproximação ao outro; à imposição de rotinas demasiado ritualizadas. Estas dinâmicas, baseadas em medos do sujo, da relação e da espontaneidade, não têm como não causar um impacto extremamente negativo na saúde mental das crianças e na construção da sua personalidade. Estamos a ensiná-las a recear o outro, a transmitir-lhes que existem perigos invisíveis, que as podem atingir, se se aproximarem dos outros.
Para que teria servido dois meses de reaprendizagem? Teríamos aprendido novos modos de sentir e de viver? Quais as prioridades a assegurar? A escola seria repensada, para que o novo ‘normal’ fosse menos normal?
Seria inconcebível que voltássemos à fútil vidinha pré-pandémica. Seria inadmissível que nada tivéssemos aprendido com a subliminar mensagem de um vírus.
Por: José Pacheco
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