Monsanto, 16 de maio de 2040
Passei pelo Ribatejo, para matar saudades de uma boa “sopa de pedra” e visitar velhos (mesmo velhos…) amigos. Voltei à estrada, rumo a Monsanto. Antes de partir, escrevi mais uma cartinha.
A estória de hoje aconteceu há cerca de trinta anos. No final de um ano letivo, com assiduidade plena e significativas aprendizagens realizadas, os alunos da escola de Monsanto “reprovaram por excesso de faltas”. Eu sei que parece mentira, mas aconteceu. Os pais dos alunos tinham optado pelo ensino doméstico. Porém, no primeiro dia de aulas do ano letivo seguinte, os pais foram informados de que o ministério não reconhecia a avaliação dos alunos atribuída pelas docentes.
Havia quem tomasse decisões aparentemente suportadas na lei. A que faltas se referiram, se os alunos até estiveram dentro de um edifício a que o ministério chamava “escola”? À luz das ciências da educação, a expressão “reprovar por excesso de faltas” era uma obscenidade. Desfecho inevitável: as crianças passaram a ser transportadas para a sede do município, por imposição de gestores, que “achavam” que, em cada “ano letivo”, elas deveriam padecer quatrocentas incômodas viagens, para passar cerca de mil horas no isolamento social de uma sala de aula.
Impunemente, burocratas tomavam decisões sem fundamento científico, ou legal e, autoritariamente, as impunham. Era assim, há vinte anos: entre os corredores do ministério e os prédios das escolas, a cidadania era cerceada e a democracia sofria maus-tratos.
Há quase cem anos, Anísio nos disse: Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública. O mestre Freire com ele concordava, mas ia lançando avisos: A prática docente, especificamente humana, é profundamente formadora, por isso, ética. Se não se pode esperar de seus agentes que sejam santos ou anjos, pode-se e deve-se deles exigir seriedade e retidão [mas] como esperar de uma administração de manifesta opção autoritária, que considere, na sua política educacional, a participação real dos e das que fazem a escola?
A minha amiga Carla foi incentivadora da redação e coautora de uma carta de princípios, onde se podia ler: “A educação, que prepara para a democracia deve se dar através de práticas não-autoritárias, que permitam a ampla participação de educandos, dos educadores, das famílias e da comunidade. Só é possível uma educação para a ação cidadã, se a educação for pela e na ação cidadã. As práticas educativas promotoras da liberdade, autonomia, respeito, responsabilidade, equidade e solidariedade, devem estar associadas aos princípios anteriores, para permitir que atinjamos o objetivo maior: a auto responsabilização social”.
Para Darcy Ribeiro, a crise da educação não era uma crise – era um projeto. Eu acrescentaria: nesse tempo, também era um caso de polícia. Ao impor a presença das crianças dentro de salas de aula, onde o constitucional direito à educação era negado a milhões de alunos, não se estaria a incorrer no crime de abandono intelectual? Quando, sem base científica ou legal, se ameaçava professores e pais, não se estaria a praticar assédio moral?
Há vinte anos, um ator se suicidou, deixando escrito um apelo: Cuidem das crianças! Então, por que não reagiam os professores? Por que não protegiam os seus alunos?
Há vinte anos, o que poderiam fazer os professores, com aquilo que fizeram deles?
Por: José Pacheco
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