Vila Madalena, 31 de maio de 2040
Em finais de maio de 2020, elogios fúnebres enalteciam um ser humano incomum. O desaparecimento de Gilberto Dimenstein era “uma perda imensa para o jornalismo brasileiro”. Assim o definiam: “Um homem íntegro, inspiração para a minha geração. Um dos principais expoentes do jornalismo brasileiro. Inquieto e dinâmico, deu voz a atores antes excluídos do debate nacional. Sensível às causas sociais, defendeu a liberdade de imprensa, as minorias, os mais vulneráveis. Um olhar humanista e solidário, dedicado à construção de uma sociedade mais justa”.
Assim, também, eu o recordo. O privilégio de conviver com esse ser humano excepcional me foi dado. Estávamos em setembro de 2003. Dimenstein juntou este velho professor ao Mestre Rubem, reuniu educadores e a comunidade, num iinesquecível encontro, na “Escola na Praça” da Vila Madalena! No final dessa noite mágica, percorri o beco, saboreei a arte dos grafiteiros. E conheci uma pessoa, que me convenceu a ficar no Brasil…
Em 2004, o Gilberto organizou a sessão de lançamento do meu primeiro livro brasileiro. Foi um evento memorável. Nesse e em outros felizes encontros, me fui dando conta da sua estatura intelectual e moral. E, porque nutria profundo respeito pela pessoa e pela sua obra, sempre que me convidava para algum evento, eu aceitava o convite. Recordo quanto com ele me diverti, num debate com candidatos ao governo de São Paulo…
Na Vila Madalena, o Gilberto reuniu boa gente, num projeto conduzido pela ONG Cidade Escola Aprendiz, para derrubar muros entre o viver e o aprender, entre o ser e o fazer. No caos urbano de São Paulo, praças, becos, teatros, bibliotecas se convertiam em espaços de aprendizagem. E, nesses contextos, o professor assumia novos papéis, agia como um tutor de jovens das mais diferentes origens e classes sociais. A escola do futuro por ele sonhada seria um nodo de uma rede de comunidades de aprendizagem. Se um filósofo dissera que se deveria educar para a vida, a obra de Dimenstein educava na Vida.
Nesses conturbados tempos, os gestos fraternos eram escassos. E a solidão era, por vezes, o destino daqueles a quem cabe por sina o conhecimento e a bondade. Quando se fala com amor, cada palavra dita é uma revelação daquele que fala. Daí que, na Babel em que frequentemente se transformara a comunicação, o Gilberto estabelecesse pontes de entendimento, abrisse janelas para a lucidez dos dias, levasse o alimento da palavra simples e pura até às raízes dialógicas, para que aquilo que padecesse de aridez se transformasse em comunicação fértil.
Tomás de Aquino escreveu que o dom da inteligência está associado ao dom das lágrimas. Deste modo, Gilberto havia comentado o diagnóstico de câncer: “A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo”. Escassos dias antes da partida do seu companheiro, a Ana convidava amigos a se juntarem numa corrente, que emanasse boas vibrações para o Gilberto. O seu companheiro faria um procedimento médico importante nessa semana: “Vibrarei para que tudo que emanarem para Gilberto possa retornar em dobro para cada um de vocês”. E o amigo Gilberto continuou entre nós.
No lugar etéreo onde estiver, saberá que a sua partida foi “um começo”, coincidiu com um tempo de refundação da escola por ele sonhada. O câncer ressignificou a sua existência e, quando a pulsão da morte induzia o caos e semeava tristeza no frenesim quotidiano, o amigo Gilberto descobriu ocultas alegrias. Com a Ana, escreveu um livro sobre a derradeira experiência. E esse livro não poderia deixar de ser uma história de amor… à Vida.
Por: José Pacheco
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