Anápolis, 06 de junho de 2040
Caro José, partilho este link porque fiquei tão angustiada ao ver esta aula, que não sabia o que fazer. Lembrei-me de a enviar a si. Tinha a certeza de que iria entender a minha angústia.
Ao cabo de dezenas de mensagens como essa, dei-me ao trabalho de assistir a uma das tele aulas. Era de Português do “ESTUDO EM CASA”, transmitida pela televisão e dirigida a alunos do 1.º ao 9.º ano. Recorri àquilo a que chamavam observação não estruturada, assistemática, agindo como mero expectador. Transcrevo o registro que, nesse mês de junho, fiz dessa aula e que encontrei num velhinho caderno de anotações. Eis a fala do professor:
“O meu nome é… e vamos continuar a aprender português. Na aula passada estivemos a ver duas versões do mesmo filme. eu gostei da versão mais antiga. se calhar tem a ver com a minha idade… [neste momento, o professor sorriu]. Não sei de qual gostaste mais [a quem se dirigia o professor?], mas são giras. Trata-se do mesmo filme” [durante alguns minutos, o professor foi repetindo o que já tinha dito].
“Ora bem! Nós hoje vamos continuar a falar de filmes. Pois é!. Nós, hoje, vamos continuar a falar de filmes. E vamos ver mais um filme. Este é de 1958. Eu ainda não tinha nascido… [o professor foi falando de filmes, escrevendo num quadro negro (digital) com giz digital esta frase: “fimes a preto e banco”]. E temos filmes a cores” [o professor escreveu no quadro negro (digital) com giz digital a frase: “fimes a cores”].
“Ora bem… os filmes a preto e branco eram mais antigos [mais alguns minutos a falar de “filmes antigos”]. A língua tem destas coisas. Então, o filme que vamos ver hoje… não sei se sabem francês, mas vamos ter um texto e tu vais perceber
vamos ver um excerto. E o que é um excerto?”
Após alguns minutos de assistir a um filme em língua francesa, o professor foi até à sua mesa, mexeu no computador e disse:
“Ora bem… espero que tenham gostado do filme. É um filme antigo, mas é muito engraçadao, não é?”
E explicou aquilo que os alunos viram no filme. Repetiu tudo o que já dissera antes. Ao cabo de uns 10 minutos de repetições, disse:
“Agora, vamos ver um texto que tem um resumo do filme. Mas, antes disso, vamos ver algumas palavras…”
A aula duraria 30 minutos. Aguentei até aos 20. E veio à memória a anedota bem conhecida na época, a do professor e do médico. Ambos tinham morrido no século XIX e ressuscitado no século XXI. Quando se viu numa UTI, entre médicos e enfermeiros tentando salvar pacientes com covid-19, o médico do século XIX não sabia o que fazer. Quando o professor ressuscitado se viu numa sala de aula, continuou a aula, que começara a dar há dois séculos. Em 2020, presencial, ou virtualmente, os alunos do século XXI assistiam a aulas do século XIX, dadas por professores nascidos no século XX. Um vírus lhes dera uma oportunidade para pensar sobre a obsolescência da “escola tradicional”. Mas o peso da “tradição” imperava, o autoritarismo da adminsitração prevalecia.
No mesmo dia em que assisti à aula televisionada, no facebook, li um artigo da autoria de um teoricista da educação. O artigo foi muito elogiado por outros fósseis teoricistas e por professáurios leitores. Considerei-o tão contraditório, que não consegui encontrar justificativa para a sua conclusão. Ei-la:
“Escola não quer dizer aprendizagem mecânica de noções, nem coincide com o martelar dos dedos num teclado, ou com a subordinação aos motores de busca”.
Até aqui, nada a obstar. Porém o articulista assim concluía o discurso:
“Para isso, é necessário evitar a liquidação da escola na sua configuração tradicional”.
Conseguem entender? Nem eu.
Por: José Pacheco
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